terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Bilhetes de Paris



A indesejada das gentes

Morrer com dignidade é uma preocupação de quem viu a morte chegar de forma desumana para entes queridos, que acabaram seus dias isolados em CTIs frios, em coma induzido ou com braços amarrados para evitar que arranquem os tubos, voluntária ou involuntariamente, que os ligam a aparelhos de respiração artificial.
Essa morte tecnológica, imposta por uma medicina desumanizada e mercantil, como praticada no Brasil, onde a saúde é um negócio como outro qualquer, é menos freqüente quando a saúde é levada a sério pelo Estado.
Agora mesmo, na Itália, temos um amigo, antigo correspondente no estrangeiro da RAI, que ao descobrir o segundo câncer (metástase de um primeiro ocorrido no ano passado) foi dispensado pelos médicos para ir terminar seus dias em casa. Sua mulher, uma pintora romana muito conhecida, foi chamada pelos médicos que informaram que não iriam operá-lo, dada a proporção que o câncer tomara. “Não vale a pena torturá-lo. O melhor é que ele volte para casa”, disseram os médicos. Nosso amigo vai terminar seus dias em casa, com a mulher e enfermeiros que se revezarão nos cuidados de sua doença terminal.
Quando vemos no Brasil que médicos mantêm nos hospitais pacientes que não têm a menor chance de cura não podemos deixar de nos perguntar se não é apenas para rentabilizar os aparelhos caros e os leitos dos CTIs de nossas clínicas privadas.
Li no ano passado uma entrevista com um médico francês, Edouard Ferrand, membro de várias comissões do governo francês sobre ética médica. A lei Leonetti, de 2005, permite que o paciente recuse cuidados médicos e que possa voltar para casa, se assim desejar. O Dr. Ferrand informava que apesar dessa lei e da mudança de mentalidade, as pessoas morrem ainda muito mal no hospital. Mesmo na França, mais da metade dos doentes morrem sozinhos, sem suas famílias, acompanhados eventualmente de um profissional de saúde, mesmo quando essa morte já era previsível.
O Dr. Ferrand criticava os médicos por operarem pacientes que não têm nenhuma chance de cura e manterem doentes no hospital em vida artificial e que acabam morrendo totalmente isolados, longe da família. Apesar de tudo, ele considera que os médicos franceses cometem os exageros terapêuticos de boa fé.
O título dessa excelente entrevista do Le Monde com Edouard Ferrand, assim como o conteúdo, era um convite a uma reflexão sobre a morte: “Mourir le moins mal possible” (Morrer o menos mal possível).
Humanizar a morte, a indesejada das gentes no dizer do poeta Manuel Bandeira, e tornar o fim de vida menos solitário e tecnológico é uma questão que deveria preocupar a todos.

Jeanne, a francesa

“Joana, a francesa” é um filme de Cacá Diegues de 1973, com uma das maiores atrizes do cinema francês de todos os tempos: Jeanne Moreau. A atriz contracenava no filme com outro francês, Pierre Cardin, embalados pela trilha sonora genial de Chico Buarque de Holanda. Um detalhe sem importância, mas freqüentemente lembrado nos anos 90: o jovem Fernando Collor de Mello, um rapaz à deriva, trabalhou na produção do filme, rodado no Nordeste brasileiro.
Este ano, Jeanne Moreau, essa atriz genial que filmou com os maiores diretores do século XX - de Buñuel a Antonioni, passando por Truffaut e Louis Malle - completa 80 anos de vida e 60 de cinema. A atriz, que brilha pela inteligência e pela cultura, foi homenageada pela TV franco-alemã Arte com um documentário que passou no domingo, e a reprise de alguns de seus filmes, a começar pelo delicioso “Jules et Jim”, de Truffaut, lançado em 1962.
A cinemateca francesa programou para fevereiro uma homenagem à grande atriz com a exibição de alguns de seus melhores filmes. Em uma entrevista publicada esta semana, a intelectual Jeanne Moreau, uma mulher engajada nas causas da esquerda francesa, leitora voraz desde a idade de 4 anos, diz que sua carreira não foi planejada. Apenas viveu sua vida: “Na palavra carreira existe uma determinação em direção ao sucesso e uma organização que não tive. Se tivesse de me definir, diria que sou uma mulher cuja especialidade é encarnar o imaginário e os fantasmas dos autores”.
Um brinde à saúde de Jeanne.


O penúltimo “poilu”

A imprensa francesa deu com destaque, na semana passada, a morte do penúltimo “poilu”, como eram chamados os soldados franceses que voltaram do front da Primeira Guerra Mundial. “Poilu” porque o soldado voltava com barba e cabelos longos, depois de escapar à carnificina que foi essa guerra que inaugura o século XX, que conheceu tantas outras carnificinas.
Lembro de uma matéria do Le Monde há poucos anos informando aos leitores que ainda havia 15 “poilus” sobreviventes, todos mais que centenários pois em 1914 já tinham em torno de 18 anos. Com a morte de Louis de Cazenave, aos 110 anos, há apenas um sobrevivente. O último dos moicanos se chama Lazare Ponticelli e com seu desaparecimento se fechará uma página da história francesa do século XX.
Louis de Cazenave não aprovou a idéia lançada por Jacques Chirac de conceder honras nacionais ao último “poilu” a falecer. Ele disse que preferia ser enterrado discretamente. Seu desejo foi satisfeito, já que teve a chance de morrer antes de Ponticelli. Este terá as honras nacionais, se Sarkozy resolver cumprir o desejo de Chirac.
Em 1995, quando a França concedeu-lhe a Légion d’honneur, Louis de Cazenave teve uma reação de rejeição. Para que serviria mais uma medalha? Finalmente, foi convencido a aceitá-la e continuou sua existência de humilde aposentado da SNCF, a rede ferroviária nacional.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Entrevista com Jacques Rancière: “A literatura põe em prática a democracia da letra errante denunciada por Platão”

Leneide Duarte-Plon, de Paris, para a Revista Tropico

No seu mais novo livro, Política da literatura (Galilée, 2007), o filósofo francês Jacques Rancière reúne textos escritos sobre essa política, que ele define como “consubstancial a um estatuto da escritura, a seu modo de se posicionar, à forma de experiência sensível que ela relata, ao tipo de mundo comum que ela constrói com os que a lêem”.Professor emérito do Departamento de Filosofia da Universidade Paris VIII, Rancière foi aluno de Louis Althusser, com quem escreveu em 1965 Lire le Capital (com Etienne Balibar). Em 1974, Rancière publicou La Leçon d'Althusser.“A constante do meu trabalho é romper com a separação das disciplinas e a hierarquia dos gêneros a fim de colocar em evidência a partilha do sensível, a maneira como a filosofia ou a literatura, a estética ou a história constituem seus discursos”.Rancière escreveu livros sobre os assuntos mais diversos : da emancipação operária à poesia de Mallarmé, da teoria política à fábula cinematográfica, do discurso da história à revolução estética. Ele é autor, entre outros, de A noite dos proletários, O desentendimento, La Fable cinématographique (Seuil, 2001), Malaise dans l’esthétique (Galilée, 2004) e La haine de la démocratie (La Fabrique, 2005).Nessa entrevista exclusiva à revista Trópico, concedida no mês de dezembro, em Paris, Jacques Rancière diz: “Flaubert é aquele que enunciou para o romance o que Worsworth, meio século antes, enunciara para a poesia: não há temas nobres nem temas vis. As inquietações de uma filha de camponeses são tão interessantes quanto as de uma grande dama.”

Em seu livro Politique de la littérature (Política da literatura) o senhor escreve : « A expressão ‘política da literatura’ implica que a literatura faz política enquanto literatura”. O senhor pode explicar melhor?

Jacques Rancière: A política da literatura se diferencia do engajamento dos escritores a serviço de uma causa e da interpretação que suas ficções podem dar das estruturas sociais e dos conflitos políticos. A política da literatura supõe que a literatura aja não propagando idéias ou representações mas criando um novo tipo de “senso comum”, reconfigurando as formas do visível comum e as relações entre visibilidade e significações. Esta política é, pois, consubstancial a um estatuto da escritura, a seu modo de se posicionar, à forma de experiência sensível que ela relata, ao tipo de mundo comum que ela constrói com os que a lêem. Essas questões não podem ser colocadas independentemente da questão da historicidade da literatura. A literatura, pois, não é um conceito transhistórico reunindo todas as formas da arte de falar e de escrever desde o começo dos tempos. É um conceito que não tem mais de 200 anos. No século XVIII, a palavra literatura designava a prática do erudito e não a arte dos escritores. A noção moderna de literatura como prática da arte de escrever nasceu ao mesmo tempo que os conceitos modernos de arte e de estética, na época das revoluções democráticas da América e da França. A literatura é, assim, um regime da escritura que rompe com o universo hierarquizado das Belas Letras: nesse universo, os gêneros eram hierarquizados segundo a dignidade de seus temas, isto é, dos personagens que representavam; a poesia era definida antes de tudo como uma ação. A ação, como encadeamento de efeitos a partir de fins perseguidos, definia o universo dos indivíduos nobres, capazes de perseguir tais fins, por oposição à vida repetitiva das pessoas comuns. Enfim, a escritura era subordinada a um modelo de excelência que era o da palavra viva, isto é, da palavra daqueles que são capazes de fazer acontecer algo apenas pela palavra. Tudo isso definia uma relação estreita entre as regras da excelência poética e o “gosto” de uma sociedade aristocrática. A literatura significa a ruína desse sistema : todos os temas são, a partir de então, suscetíveis de ser considerados poéticos, toda vida é digna de ser escrita; não há mais princípio de correspondência entra a dignidade dos personagens e a qualidade de expressão. A palavra oral perde sua função de norma em benefício do livro escrito, que se dirige a qualquer um ao acaso e não mais a um público escolhido. Nesse sentido, a literatura põe em prática a democracia da letra errante denunciada por Platão: a palavra que vai falar a qualquer um, não controlando seu trajeto e não selecionando seus destinatários. A democracia literária faz qualquer pessoa sentir formas de sentimento e de expressão reservadas às pessoas escolhidas. Ela contribui, assim, a uma democracia que é a da circulação e da apropriação aleatória das formas de vida e de experiência vivida, das maneiras de falar, de sentir e de desejar. Esta democratização é própria à literatura como tal, ela é independente das idéias políticas dos escritores. Estes descrevem de bom grado as agruras que sucedem às pessoas do povo quando se põem a ler romances. Mas os romances nos quais eles o fazem amplificam mais ainda esta oferta generalizada de formas de vida e de modos de sentir.

O senhor diz que a literatura no sentido moderno nasce entre o fim do século XVIII e o XIX como a ruína do sistema das belas-letras, que permite a divulgação de um gênero marginal, o romance. Esta revolução é levada à sua conseqüência extrema por Flaubert. De que se trata?

Jacques Rancière : Tradicionalmente, o romance vivia uma existência marginal, à margem dos gêneros normais e respeitados. A narrativa seguia os acontecimentos aleatórios de vidas caóticas em vez de seguir o fio de uma intriga bem-construída com conflitos e solução. Ele misturava em suas peripécias nobres e pessoas comuns, palácios e espeluncas, discurso culto e discurso popular. As pessoas distintas consumiam muito o gênero, mas ele continuava, apesar das diversas tentativas de regulamentação e de “enobrecimento”, um produto de consumo e de divertimento. Voltaire esperava a glória por suas tragédias e não por seus romances. A revolução literária é, antes de tudo, a promoção do romance como forma exemplar da arte de escrever. Durante o século XIX, este passa do status de escrito sem gênero ao de encarnação da arte literária, enquanto os gêneros nobres caem na marginalidade. O próprio do romance, isto é, a faculdade de misturar as condições e as linguagens, de usar qualquer tema e de utilizar qualquer forma de expressão para tratá-lo torna-se a característica da própria literatura. Flaubert é aquele que enunciou para o romance o que Worsworth, meio século antes, enunciara para a poesia: não há temas nobres e temas vis. As inquietações de uma filha de camponeses são tão interessantes quanto as de uma grande dama. Ele tira as últimas conseqüências desse princípio igualitário acrescentando que, afinal de contas não há temas, uma vez que o estilo é “uma maneira absoluta de ver as coisas”. Interpretou-se isso como o manifesto de uma arte pela arte, preocupada apenas com a perfeição formal. Mas isso seria desconhecer completamente a lógica dessa posição : o estilo “absolutizado” não é o estilo voltado ao seu próprio culto. É, antes de tudo, o estilo inteiramente liberto de qualquer exigência de fazer corresponder uma maneira de falar com uma condição representada. Em segundo lugar, é o estilo que procura desaparecer, tornar-se como uma respiração da vida impessoal. Os contemporâneos reacionários de Flaubert não se enganaram: o romancista não tinha nenhuma simpatia política pela democracia. Mas sua maneira de estabelecer a igualdade entre todos os personagens, de dar à descrição dos acontecimentos cotidianos e das coisas prosaicas a mesma importância que aos sentimentos e ações dos personagens, de desconectar, pois, o poder da escritura de qualquer hierarquia dos temas era democrática. Sua heroína Emma Bovary queria desfrutar dos gozos da literatura ao mesmo tempo que da vida aristocrática. Não somente ele se recusava a julgá-la mas também tornava-se seu cúmplice usando suas aspirações e suas inquietações no tecido impessoal de seu estilo.

Segundo o senhor, “a literatura é o nome de um novo regime da verdade. É o nome de uma verdade que é antes de tudo destruição da verossimilhança : uma verdade não verossímil”. A verdadeira literatura seria que qualquer coisa acontece com qualquer pessoa. O senhor pode explicar melhor ?

Jacques Rancière : Distingui três modos possíveis de relação entre a verdade e a ficção. Primeiramente, há a “verdade da fábula” : a verdade escondida sob o véu da fábula, a instrução que ela comporta, mas também, eventualmente, a verdade que denuncia seu artifício acusando a mentira dos poetas, como Platão, ou o viés da ficção. Em seguida há a verossimilhança da ficção. Esta diz respeito, primeiramente, à coerência interna da ficção, ao encadeamento bem-sucedido das causas e dos efeitos na tradição aristotélica, que continua até Borges. Ela se encadeia depois à consistência dos caracteres, de seus sentimentos, pensamentos e ações, à idade clássica, cuja lógica se prolonga na tradição do romance psicológico. Esta lógica da verossimilhança é uma lógica seletiva. Ela separa as razões da ação ficcional do desenrolar aleatório ou repetitivo da via ordinária. Isto significa que as regras da verossimilhança se aplicam a situações e a personagens elevados acima da humanidade comum. Há pessoas que vivem num mundo de acontecimentos, dos quais são causas ou dos quais eles sofrem as conseqüências. E há aqueles que estão encerrados num mundo sem acontecimentos. Quando a literatura declara a igualdade de todos os temas, ela declara, portanto, que há acontecimento em toda parte, na vida de Eugénie Grandet, de Jane Eyre ou de Germinie Lacerteux assim como na dos grandes capitães, que todos os acontecimentos são tecidos na mesma teia existencial. A barreira entre a razão construída das ficções e o acaso das vidas empíricas não tem mais consistência. Com essa barreira, cai o edifício dos encadeamentos verossímeis de causas e de efeitos, como o dos sentimentos atribuíveis a este tipo ou àquele tipo da humanidade. Em um texto célebre, Borges zomba dos excessos realistas da psicologia inverossímil dos romances do século XIX. Mas esse duplo “defeito” é a marca mesmo de um novo regime de verdade. A verdade literária é uma verdade não-verossímil, uma verdade que não vem também de um encadeamento previsível de causas e de efeitos mas de uma relação regulada entre tipos de personagens e tipos de sentimentos e reação. Esta verdade se manifesta nas vidas e em suas manifestações mais vulgares e mais ínfimas. Ela se manifesta de duas formas: de uma lado, é a verdade imposta, ignorada, do que marca os seres e do que circula entre eles, a verdade que os indivíduos procuram em vão obter uns dos outros, como o narrador proustiano diante de Albertine; de outro, é a verdade reconquistada onde justamente se sai do sistema das conexões causais previsíveis e dos sentimentos atribuídos a indivíduos diante de outros indivíduos. Essa verdade é aprendida como um salto, como a irrupção de uma outra lei. É o que resumem as epifanias proustianas, caracterizadas por três traços: seu caráter acidental, externo ao encadeamento habitual das percepções e comportamentos; a insignificância de suas causas, por exemplo, um barulho de garfo num prato ou uma sensação de roupa áspera; e a desproporção entre a insignificância dessa causa e a “vida verdadeira” da qual ela fornece a chave.

Segundo o senhor, o escritor é o arqueólogo ou o geólogo que traz à tona testemunhas mudas da história comum. Tal é o princípio que rege o romance chamado realista. Por que Balzac e Flaubert fazem um trabalho de arqueólogos?

Jacques Rancière : Nas primeiras páginas de Peau de chagrin Balzac opõe dois poetas, isto é, dois tipos de poetas. De um lado há Byron, o poeta que traduz em palavras os problemas das almas. Do outro lado, há Cuvier que não tem nada de um “poeta” segundo a distribuição normal das artes e das ocupações, é um naturalista. Cuvier é, para Balzac, o verdadeiro poeta dos tempos modernos, porque ele procede como os arqueólogos que reconstituem um mundo a partir de algumas ruínas. Ele reconstitui uma raça desaparecida a partir de um osso ou florestas perdidas a partir de marcas fossilizadas na pedra. A literatura está pendurada nesse deslocamento do conceito do poema que é também uma passagem de um regime de sentido a um outro. A linguagem que serve de modelo a partir de agora não é a que traduz em signos linguísticos os pensamentos ou os sentimentos. Não é mais aquele que quer expressar mas aquele que expressa sem saber : a linguagem que é escrita nas pedras como a marca dos acontecimentos, como sua escritura. Essa linguagem se identifica à própria história das coisas escritas diretamente sobre seu corpo. É isto que o romance com Balzac, Hugo ou Zola quer fazer falar : a história de um modo de vida, público e íntimo, escrito na fachada de uma casa; a história de um destino, de um tipo social, de uma geração, escrita numa roupa; o quadro de uma civilização apresentada por um esgoto ou por uma vitrine de tecidos ou de queijos. A literatura se constitui explicitamente como esta arqueologia do mobiliário social pelo qual os historiadores, fixados ainda nos grandes acontecimentos e nos grandes personagens, não se interessam. Nesse sentido ela precede a revolução “científica” da história e cria suas condições de possibilidades. Ela tende, ao mesmo tempo, a se opor à política que se desenrola sobre o espaço público e aos discursos dos oradores do povo uma viagem nas profundezas secretas que sustentam esse espaço. Ela se constitui como uma metapolítica, que decifra os vestígios, os signos e os sintomas que dão testemunho da verdade de uma sociedade melhor que as palavras sonoras e os atos espetaculares da política.

A literatura é, segundo o senhor, “a vida verdadeira que nos cura dos mal entendidos da ficção amorosa bem como da ficção política.” Por quê?

Jacques Rancière : Não é uma afirmação pessoal. É uma frase que tenta resumir a “política da literatura”. Num primeiro nível, é um comentário de Proust e de sua afirmação que a literatura é a “vida realmente vivida”: o trabalho do escritor é apresentado como o inverso do “trabalho” pelo qual o narrador tinha construído seu amor por Albertine. Na origem desta construção, há uma aparição numa praia, uma mancha móvel impessoal feita pelo grupo de moças. O erro do personagem, o erro que traz o sofrimento, é o de querer individualizar essa mancha, na pessoa do ser amado único. É o erro da individualização. A literatura faz o caminho oposto : ela dissolve as falsas individualidades em benefício de um mundo de singularidades pré-individuais, em benefício de um mundo do impessoal. Ela se apropria dos momentos sensíveis que escapam aos esquemas do hábito e às interpretações do amor. Ela constrói o tecido sensível próprio a acolher e a encadear numa nova vida esses momentos sensíveis puros.Num segundo nível, isto define a distância entre a política da literatura e a política. Ao longo do século XIX, a literatura desenvolveu-se como uma encenação da realidade que questiona as ilusões da subjetividade, que muda de nível e de escala recolocando os acontecimentos sensíveis que os produzem no contexto das sensações pré-individuais e da vida coletiva impessoal. A narrativa de Madame Bovary nos mostra como na origem de cada um dos amores de Emma há simplesmente um conjunto de elementos sensíveis impessoais : um turbilhão de poeira, um raio de sol em gotas de água... O erro de Emma é querer transformar esses acontecimentos da sensação em qualidades de seres amantes e amados. A frase de Flaubert dá a esses micro-acontecimentos a qualidade sensível que faz deles causas de alegria e não de sofrimento. Esta distância da ficção amorosa a literatura também tomou em relação à ficção política. A narrativa de Os miseráveis nos faz passar bruscamente da morte heróica dos combatentes republicanos nas barricadas ao mergulho no esgoto que recolhe a verdade escondida da vida coletiva sob as aparências da sociedade. Tolstoi opõe às pretensões dos estrategistas o entrelaçamento da multidão de pequenas ações que constituem a vida de um povo e que decidem também as batalhas. Mais tarde, Conrad levará os missionários da racionalidade européia civilizadora até o ponto em que seus projetos civilizadores se perdem no murmúrio inquietante de uma natureza ininterpretável e de um universo de superstição impessoal. Há evidentemente dois tipos de cura : a cura niilista, a renúncia ao querer-viver ou a declaração do nonsense que impregna fortemente a literatura européia no fim do século XIX. E há a cura positiva, a constituição da cadeia dourada dos momentos sensíveis puros que Proust apresenta como a cura desse nihilismo.

Emma Bovary, por excesso de imaginação, confunde a literatura e a vida real. O que isso significa confundir a literatura e a vida?

Jacques Rancière : Na realidade, isso não quer dizer muita coisa. Só cito essa confusão entre literatura e vida para frisar o equívoco que ela contém. Há, na realidade, duas maneiras de compreender o caso Emma Bovary. Há a acusação tradicional que faz de Emma uma das numerosas vítimas da ilusão fatal que leva a confundir o imaginário e o real. Mas Emma não confunde nada. Ela sabe bem demais que a vida dos camponeses não tem nada a ver com os idílios campestres dos poetas. Ela não confunde a literatura com a vida por inadvertência. Ela faz algo de muito mais perigoso. Ela exige que a vida seja como a literatura. Ela reclama o direito para uma filha de camponês – o direito para qualquer um – de viver seus ideais e as paixões que os poetas reservam às almas delicadas e bem nascidas. É isso que é escandaloso aos olhos dos contemporâneos que se assustam com essa “excitação nervosa” que toma conta dos espíritos populares. O que é comum a Emma Bovary e aos operários emancipados que são seus contemporâneos é romper a separação que deixa aos filhos do povo as sólidas realidades e reserva aos que fizeram estudos e aos que não têm necessidade de ganhar a vida as delicadezas da sensação e da linguagem ou o cuidado de se ocupar dos negócios da comunidade. Os contemporâneos de Flaubert denunciam a complicidade do autor com esta promoção de apetites novos no povo. E é bem verdade, num certo sentido, que a ilusão de Emma não é senão a outra face da operação da literatura que declara que toda vida é agora digna de ser tema de romance. Há cumplicidade entre o romancista e seu personagem mas todo o esforço do romancista é de tirar proveito dela, colocando a unidade da vida e do livro apenas no livro, enquanto seu personagem quer pô-la na vida empírica. Por trás do problema ficcional da relação da heroína com a literatura, há o problema estrutural da relação entre literatura e democracia. Num certo sentido, a literatura é cúmplice dessa apropriação de novas formas de vida por homens e mulheres antes voltados para a vida repetitiva. Mas ao mesmo tempo, ela tenta romper esse laço, separar a verdade sensível de que ele dá conta das interpretações e das ilusões de seus personagens.