segunda-feira, 31 de maio de 2010

Redemocratização com "jeitinho"

HISTÓRIA
Redemocratização com “jeitinho”
Por Leneide Duarte-Plon (Entrevista publicada originalmente na revista Trópico)

Embaixador francês Alain Rouquié, que lança livro sobre a América Latina, diz que regime militar foi “moderado” no Brasil e que transição "suave" e conciliatória para a democracia dificulta a revisão da Lei de Anistia


Embaixador da França no Brasil entre 2000 e 2003, o cientista político Alain Rouquié, especialista na América Latina contemporânea, lançou em março em Paris o livro “A l’Ombre des Dictatures – La Démocratie en Amérique Latine” (“À Sombra das Ditaduras”, Ed. Albin Michel). Na obra, ele examina como as atuais democracias sul-americanas lidam com a herança política deixado pelos regimes militares dos anos 60 e 70.
“Do Brasil, não se pode dizer que ele seja prisioneiro do regime militar, mas sim que os militares conservaram uma espécie de poder de veto extremamente importante”, analisa Rouquié na entrevista abaixo, concedida à Trópico, em Paris.
Para o embaixador, a transição da ditadura militar à democracia no Brasil se passou de maneira “mais suave” do que em outros países latino-americanos e foi acompanhada de um esforço de conciliação dos políticos entre si e deles com os militares, o que dificulta a discussão do passado da repressão.
“Houve uma reconciliação da classe política, a antiga e a nova, os que estavam incluídos e os que estavam excluídos, e tudo se passou à brasileira, com o famoso ‘jeitinho’. É, portanto, difícil fazer processos e acerto de contas”, diz o embaixador.
Ele também afirma que o regime militar brasileiro foi “relativamente moderado”, se se compara o número de suas vítimas no Brasil e as dos regimes chileno e argentino.
Autor de importantes obras sobre os países lationamericanos, como “L’Etat Militaire en Amérique Latine” (1982) e “Le Brésil au XXIe siècle”, (2006), Rouquié lançou seu novo livro na Maison de l’Amérique Latine, da qual é presidente, num debate do qual participaram os pesquisadores Jean-Michel Blanquer, Marcel Gauchet e Carlos Quenan. Na platéia, entre cientistas políticos, jornalistas e diplomatas, estava o sociólogo Alain Touraine.
“O presidente Lula garantiu a continuidade da política econômica, ampliou a política social de seu predecessor, aprofundou-a e se comportou como um democrata, não tentou mudar a Constituição para ter um terceiro mandato. Ele deu uma projeção internacional ao Brasil como nunca se viu”, afirma Rouquié sobre o governo brasileiro atual.
Apesar disso, ele diz não ser evidente que Lula possa eleger sua sucessora. “Carisma não é transferível, e um presidente é eleito pelo seu programa e não pelo balanço positivo de seu predecessor”, declara.
A seguir a íntegra da entrevista exclusiva que Alain Rouqié concedeu à Trópico.
*
No seu novo livro, “A l’Ombre des Dictatures – La Démocratie en Amérique Latine”, o senhor fala de Estados terroristas e de terrorismo de Estado. O que caracteriza o terrorismo de Estado?
Alain Rouquié: Nos anos 70, há o surgimento de regimes militares na América Latina que se distinguem em muito dos regimes militares anteriores.
Os antigos regimes militares tecnocráticos, burocráticos, evidentemente não permitiam o surgimento da democracia, pois suspendiam a Constituição, dissolviam os partidos e o Congresso, mas utilizavam um nível moderado de repressão, porque o objetivo deles não era mudar o modelo político, nem o econômico. Pensavam que podiam fazer funcionar esse sistema melhor que os partidos políticos e consideravam os homens políticos pouco patrióticos ou pouco ligados dos interesses da nação.
Nos anos 70, porém, surgem regimes militares que começam a fazer o que eles chamam de guerra antissubversiva, uma guerra civil que tem como objetivo suprimir as oposições que combatem os modelos econômico, social e político que os militares consideram capazes de assegurar a felicidade do país.
Eles pensam, pois, que os partidos são dispensáveis, que a democracia é frágil e que é preciso defendê-la. Mas pensam, sobretudo, que os que criticam e se opõem devem não somente ser reprimidos, mas também exterminados.
Assim, esses Estados fazem a guerra a seus próprios povos, como no caso do Chile, por considerarem que houve uma tentativa de implantar um sistema socialista. Outras vezes, pensam que há uma subversão mais ou menos concreta, promovida por grupos guerrilheiros, como na Argentina, e que combater esses grupos não é o bastante, é preciso ir além. Precisam combater todos os que criticam o sistema por eles implantado, todos os que a ele se opõem.

Foi de fato uma guerra civil o que esses Estados terroristas empreenderam, sem nomeá-la assim?
Rouquié: Foram esses novos dirigentes do Estado, esses militares, que consideraram que se tratava de uma guerra civil. Foram eles que organizaram a guerra civil. Em muitos países, quando atacaram as oposições, elas não estavam mais armadas, tinham sido totalmente liquidadas, excetuando-se alguns casos esporádicos na Argentina ou um pequeno ressurgimento do Partido Comunista no Chile.
Foram os militares que organizaram uma verdadeira guerra civil para aterrorizar os que eles consideravam como subversivos, por se oporem à consolidação de um Estado hierarquizado, oligárquico, na Argentina, ou a um sistema conservador com uma classe dirigente rica que concentrasse o poder, como no Chile.
No caso do Uruguai, um país com uma extraordinária liberdade de expressão que parece ser um caldo de cultura do comunismo, eles utilizaram o terror. Dizem que é preciso aterrorizar os terroristas, mas aterrorizam os cidadãos, para que pensem em função do modelo econômico que os Estados e os militares querem instaurar.

Os militares na Argentina, no Chile e no Brasil prepararam a saída da ditadura com leis para se autoanistiarem. Mas, na Argentina e no Chile, a Justiça realizou o julgamento dos responsáveis pelos crimes da ditadura. O senhor escreve: “Parece difícil construir um Estado de direito sobre o esquecimento e a reconciliação entre vítimas e carrascos”. Por que o Brasil não quer rever a Lei de Anistia?
Rouquié: Não só o Brasil tem dificuldade. O Chile teve também dificuldades, pois o país democrático herdou a Constituição e as leis de Pinochet. Essa Constituição de Pinochet foi emendada e reformada, mas isso demorou um pouco.

Mas o Brasil saiu da ditadura em 1985.
Rouquié: Mas, no Chile, a anistia dos militares continuou a ser válida. O chefe da Polícia Militar, general Contreras, só foi julgado porque tinha feito um atentado nos Estados Unidos contra o ministro de Allende, Orlando Letelier, e nesse atentado morreu uma cidadã americana. Os americanos exigiram justiça. Mas os processos que vemos hoje são minoria, tratam de problemas muito precisos que não entraram nas leis de anistia, como os desaparecidos, por exemplo. Pinochet morreu sem nunca ter sido citado em um processo. Ele morreu em 2006, depois de ter comandado o Exército até 1998!

Mas tem-se a impressão de que no Brasil esse olhar sobre o passado é mais difícil…
Rouquié: No Brasil as coisas são diferentes porque tudo é diferente no Brasil. Primeiramente, o regime militar que tomou o poder em 1964 apresentou-se como um regime instalado apenas para fazer retificações. O primeiro presidente se disse pronto a deixar o poder para um partido conservador.
Depois, as coisas mudaram. Mas, diferentemente da Argentina e do Chile, o regime brasileiro procurou manter aparências democráticas, não excluiu a classe política. Realizou eleições e até mesmo eleições presidenciais, mesmo se era preciso ser general para se tornar presidente.
Houve também eleições legislativas, com apenas dois partidos, mas a aparência de vida política democrática continuou. Por outro lado, não se viu antes do AI-5, antes de Médici, uma repressão do tipo terrorista contra os intelectuais e a esquerda. Houve pessoas que se exilaram, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, por exemplo, mas isso se deu sobretudo depois do AI-5.
As universidades não foram molestadas. Na Argentina, as universidades praticamente desapareceram, os centros de pesquisa foram reprimidos e aniquilados. Os militares brasileiros pretenderam construir um Estado poderoso, reforçaram-no plano econômico. Nunca foram criadas tantas empresas públicas quanto sob o governo militar no Brasil. Na Argentina e no Chile é exatamento o contrário.

A classe política brasileira atual tem uma grande dificuldade em rever o passado, e o debate se tornou difícil.
Rouquié: Por diversas razões. Primeiramente, a restauração da democracia foi feita sob a égide dos militares, a famosa abertura gradual, que durou 11 anos. Mas, finalmente, por um acaso misterioso da história, foi o último presidente do partido dos militares (José Sarney, presidente da Arena e do PDS) quem se tornou o primeiro presidente da democracia restaurada, o que não deixa de ser paradoxal.
Junte-se a isso o fato de que, em números absolutos, mas também relativos, as vítimas do regime militar brasileiro -comparadas às vítimas dos regimes chileno e argentino– foram em número bem menor. O do Brasil foi um regime militar relativamente moderado, exceto em alguns períodos, como o Araguaia.
Isso explica essa transição mais suave, na qual políticos que estavam no poder com os militares se tornaram dirigentes da democracia. Houve uma reconciliação da classe política, a antiga e a nova, os que estavam incluídos e os que estavam excluídos, e tudo se passou à brasileira, com o famoso “jeitinho”. É, portanto, difícil fazer processos e acerto de contas.

Pode-se dizer que o país está ainda mais ou menos prisioneiro da ditadura e dos militares ?
Rouquié: Não. Pode-se dizer isso da Argentina e do Chile. Do Brasil, pode-se dizer apenas que os militares conservaram uma espécie de poder de veto extremamente importante, o qual é respeitado pelos políticos, de esquerda ou de direita, tendo eles sofrido perseguição dos militares ou não. Tanto o presidente Fernando Henrique Cardoso quanto o presidente Lula se recusaram a abrir os arquivos da repressão.
Lula, quando candidato e baseado em um discurso nacionalista, desejou ter as melhores relações com os militares. E fez isso, apesar de ter sido preso durante a ditadura. Ele pensava que era necessário um diálogo com os militares, que era necessário respeitá-los e ser respeitado por eles.
Assim, o passado se torna mais difícil de ser remexido. Basta lembrar do problema do ex-ministro da Defesa José Viegas, que tentou abrir um pouco as coisas e foi obrigado a pedir demissão. Os militares o colocaram numa situação difícil. Ele perdeu. Não é a sombra do regime militar, mas o fato de que os militares aceitaram fazer uma transição sem muita dificuldade, sem muita violência, e foram eles que acalmaram os duros do Exército. Foi Figueiredo quem os combateu. Há um respeito que dá um peso considerável aos militares, não um peso no orçamento, mas um peso político importante.

Luis Carlos Prestes, o secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, dizia que os militares tinham deixado o governo, mas detinham ainda muito poder no Brasil. O senhor concorda?
Rouquié: Creio que é exatamente isso. Não conhecia essa citação de Luis Carlos Prestes, mas é verdade: os militares têm muito poder, mais que na Argentina ou no Uruguai. Talvez não mais que no Chile. Porque no Brasil eles fizeram as coisas de maneira bastante consensual.
Foi um longo processo, mas me lembro que, em 1976, ainda sob a ditadura militar, eu fui ao Brasil no momento de uma campanha eleitoral. Todo mundo discutia política, distribuía panfletos na rua, e não havia repressão. Na mesma época na Argentina, o clima era pesado.

O senhor pensa que o debate em torno da anulação da Lei de Anistia para os torturadores vai se encerrar no Brasil?
Rouquié: Não sei como ele vai terminar. Cabe aos cidadãos brasileiros decidir. Me pergunto se esse problema vai ser tratado durante a campanha presidencial. Penso que ele não interessa à maioria dos cidadãos brasileiros e acho que esse debate não estará no centro das discussões durante a campanha.
A discussão interessa apenas aos cidadãos muito conscientes, aos intelectuais, jornalistas, historiadores e militares. Pode haver militares que querem que o assunto seja encerrado, não pelo esquecimento, mas justamente fazendo uma declaração como fez o general Julio Emilio Cheyre, no Chile. Ele disse: ”Nós assumimos plenamente o que fizemos, e lamentamos”.

O presidente Lula chega ao fim do seu segundo mandato. Que avaliação política o senhor faz de seu governo?
Rouquié: Precisaria escrever um novo livro para responder. O saldo é positivo, como reflete sua popularidade. Ele é positivo no interior do país, porque garantiu uma continuidade política. O problema do Brasil durante muito tempo foi uma discontinuidade das políticas econômicas. O presidente Lula também ampliou a política social de seu predecessor, aprofundou-a e se comportou como um democrata, não tentou mudar a Constituição para ter um terceiro mandato. Ele deu uma projeção internacional ao Brasil como nunca se viu. Eu diria que ele realizou o sonho do Barão do Rio Branco, colocando o Brasil entre os grandes. Primeiramente, entre os grandes periféricos; depois, entre os grandes que contam.
Não se faz mais nada em matéria de negociações comerciais internacionais sem a participação do Brasil. O Brasil está no Bric e é hoje um país incontornável para o futuro de um governo mundial. E isso é resultado dos dois mandatos de Lula.

O senhor pensa que a exista uma campanha contra o presidente Lula na imprensa brasileira, que não tem nenhum jornal de esquerda?
Rouquié: E você conhece um único diário de esquerda na América Latina?

Sim, o “Página 12”, na Argentina...
Rouquié: Sim, mas ninguém lê o “Página 12”, e ele foi comprado pelo governo. Foi um bom jornal, mas não é mais. No Chile a imprensa é controlada pelo “Mercúrio” ou pelo senhor Piñera. Ela é de direita, e isso não impediu que durante 20 anos houvesse presidentes socialistas e democratas-cristãos. A imprensa é hostil ao PT, mas foi muito mais hostil no momento da eleição presidencial. E sabe-se que a hostilidade da imprensa, que refletia ou estimulava a hostilidade dos mercados, criou uma situação econômica extremamente grave, com um dólar valendo R$ 4.
Mas penso que isso não é tão importante, já que a popularidade do presidente é grande, o que significa que as pessoas não levam em conta a posição da imprensa ou não lêem os jornais. O tamanho da popularidade de Lula, que tem em torno de 80% de aprovação dos brasileiros, não vem unicamente dos beneficiários do Bolsa Família no Nordeste. São as classes médias, os empresários e também os militares. Ele é um homem de consenso e há um consenso sobre tudo o que ele fez.

A ex-presidente do Chile também tinha uma grande popularidade, em torno de 80% e não conseguiu eleger um candidato de esquerda. Lula vai conseguir eleger sua candidata?
Rouquié: Vou fazer dois comentários gerais de análise política. Carisma não é transmissível. Quando se é um líder de prestígio, você não transmite esse prestígio a ninguém, se é um verdadeiro democrata. Pode nomear o filho, a mulher, mas numa democracia normal isso não é possível.
Em segundo lugar, um candidado não é eleito com base num balanço favorável, mas com base num projeto. E, no Chile, Frei não tinha projeto. Bom ou mau, Piñera parecia ter um projeto, e depois o desgaste do poder também conta.
Serra não é um candidato novo. Não é como Piñera, que era um homem novo, que ninguém conhecia. Não é a mesma equação. É preciso ver se Dilma Rousseff tem um projeto, porque o balanço positivo existe. Mas o balanço de um presidente não faz, necessariamente, seu sucessor.

Os intelectuais franceses se espantam com o fato de o Brasil não ter um diário de esquerda. Como o senhor explica isso?
Rouquié: Os intelectuais franceses são mais franceses que intelectuais. Na França, também não há jornal de esquerda. “Libération” está quase morrendo, e “Le Monde” é lido por uma pequena elite. “L’Humanité’’ é um jornal quase confidencial. Leio todos eles. Tenho muito respeito por esses jornais e penso que é importante que existam. Mas não é isso que faz uma eleição, não é isso que faz a diferença, que pesa na evolução política, econômica e social de nosso país.

O que pesa ?
Rouquié: Penso que é o rádio, a televisão, as ONGs, os jornais gratuitos, a internet. Tudo isso. Hoje, a imprensa escrita é lida por uma elite. Hoje estamos invadidos pela informação, e o cidadão escolhe em função de sua sensibilidade, de seus valores.
Na internet, o cidadão tem todas as informações do mundo, de esquerda, surrealistas, tudo. Ele escolhe. Pode-se pensar que é democrático, mas é caótico. Não se sabe para onde vai a imprensa escrita. Espero que ela se mantenha, mas não se pode dizer que daqui a 20 anos não teremos informações transmitidas de maneira completamente diferente por outros meios.

O presidente Hugo Chavez é um personagem controvertido. O que ele representa para a América do Sul e para a Venezuela?
Rouquié: Precisamos conhecer as origens de Chavez e do chavismo, entre 1989 e 1998. Em 89, o que aconteceu? Ocorreu o “caracaço”, a revolta popular violentamente reprimida, que teve muitos mortos e levou a uma tomada de consciência de muitas pessoas de esquerda e mesmo militares.
Houve algo que deixou de funcionar no sistema democrático da Venezuela, um dos mais antigos da América Latina, desde 1958. Entrou-se num período em que o sistema democrático desmoronou, pela corrupção e pelo clientelismo. Entre 1958 e 1998, este sistema bipartidário, socialdemocrata e democrata-cristão não conseguiu conciliar a democracia com o que ela tem de complicado, de difícil, mas também de igualitário e uma distribuição mais justa da renda do petróleo.
Ora, esse sistema entrou em crise, pois a renda do petróleo era dividida entre os clientes e os partidos, homens de negócios, sindicalistas e funcionários públicos, que eram muito bem pagos. Então, em 1992, houve a tentativa do golpe de Estado, que não funcionou. Os militares disseram: “Vamos fazer eleições, vamos mudar isso”. Houve uma crise sociopolítica, os partidos se desfizeram.
Chavez e o chavismo nasceram daí, de uma demanda de distribuição mais justa dos lucros do petróleo e de um funcionamento da democracia que fosse mais inclusiva, que não fossem apenas os sindicatos e o partido social-democrata aqueles que iriam tirar proveito do bom funcionamento do sistema social e político. Se não se compreende isso, não se compreende Chavez.
Cada vez que houve prosperidade ligada ao petróleo, a Venezuela quis ter um papel internacional importante. Em 1973-1979, os governantes da época tiveram um ativismo internacional considerável, queriam dar lição em todo mundo. E com Chavez assistimos a uma situação parecida, porque houve o aumento do preço do petróleo. Quando Chavez chegou ao poder em 1998, o petróleo estava a US$ 8 o barril. Felizmente para ele, desde 1999, o petróleo subiu muito, e isso sustentou o regime.
Mas ninguém sabe o que é o “socialismo do século XXI”. Sabe-se quem foi Bolívar, um homem admirável que imprimiu sua marca em todos os países da grande Colômbia, que tinha um pensamento muito avançado para sua época. Mas as lições de Bolívar não são muito utilisáveis no século XXI. Os regimes desse tipo, que pretendem ser refundadores e que são plebiscitários, são comuns na América Latina desde 1945. Isso não é novo.

Qual é a diferença da Venezuela atual?
Rouquié: Para a Venezuela, esse ativismo internacional não é novo, pois é uma constante num país que tem uma renda de petróleo que lhe permite ter um papel internacional. Bettencour foi um homem que fez muito para a transmissão da democracia na Venezuela. Ele estabeleceu a doutrina Bettancourt, que diz que todo país da América Latina não-democrático não seria reconhecido pela Venezuela.
Ora, isso era uma maneira de exportar a democracia e ajudar os partidos democráticos vizinhos. É uma tendência histórica da Venezuela, um país monoprodutor de petróleo. Há paradoxos, a Venezuela antiimperialista e antiamericana tem como primeiro cliente e primeiro fornecedor os Estados Unidos. As coisas não são simples...

Chavez é próximo de Fidel Castro, de Cuba e do Brasil.
Rouquié: Do Brasil, é bom que seja. Penso que, na meta política e internacional do presidente Lula e do Itamaraty, há a ideia de que não se deve permitir que a América Latina se divida. E, portanto, é preciso ter boas relações com a Venezuela, que, além do mais, é um bom cliente para as grandes empresas brasileiras de engenharia.
Penso que as coisas não são tão dramáticas quanto elas podem parecer. Mas existem decisões de difícil compreensão. Por exemplo, Chavez decidiu um dia nacionalizar supermercados que pertenciam ao grupo francês Casino. Ele pensava que eram colombianos, porque tinham um nome colombiano. Depois, voltou atrás, não pode expropriar uma empresa assim. É um personagem cheio de contrastes, como existiram tantos na América Latina: Vargas no Brasil e Perón na Argentina, por exemplo.

O que o senhor pensa do direito de ingerência, o direito de fazer uma guerra sem ter sido vítima de agressão, apenas para “exportar” a democracia, como ocorreu no Iraque?
Rouquié: Isso é inaceitável, não se tem certeza que a ingerência externa seja o melhor meio de estabelecer a democracia. Tentei demonstrar no meu livro que a democracia é difícil, são necessários anos e mesmo séculos para instaurá-la. Não é apenas uma constituição e eleições que permitem instaurar uma democracia que funcione com a separação dos poderes, o respeito dos direitos humanos e o respeito dos resultados eleitorais.
A guerra leva exatamente ao contrário. Não é pela guerra que se instaura a democracia.

Publicado em 27/4/2010
.
Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.


terça-feira, 25 de maio de 2010

Nossos torturadores serão julgados? Cidadão Boilesen em Paris



Leio no Le Monde de 5 de maio: O ex-ditador Videla será julgado pelo desaparecimento de um alemão em 1978.
A notícia era curta e dizia que a graça da qual se beneficiava Jorge Videla seria anulada para que o ex-ditador argentino pudesse ser julgado por sequestros, tortura e quarenta homicídios, entre eles de um cidadão alemão. A maioria das quarenta vítimas, encontradas enterradas com as iniciais “N. N.” nos cemitérios de Buenos Aires, foram identificadas recentemente por uma equipe de legistas. Entre elas estava o corpo do alemão Rolf Stawowiok, desaparecido em 1978.
A Justiça tarda mas chega para o povo argentino que se reconcilia com seu passado através do julgamento de crimes até hoje impunes. Tortura e eliminação de dissidentes políticos são crimes imprescritíveis. Ou não?

Fui ver o premiado e excelente filme argentino “O segredo dos teus olhos”, que passa em Paris com o título “Dans ses yeux” e logo depois li a notícia do julgamento de Videla. Faz bem ver o esforço da Argentina em passar a limpo o passado.

Quando o Brasil vai julgar Bilhante Ustra e seus colegas torturadores?
Pude rever em Paris esta semana o filme Cidadão Boilesen, no qual Ustra responde às perguntas do autor do filme, Chaim Litewski, lendo um texto em que nega em bloco todas as verdades conhecidas. No final da projeção, pudemos dialogar com o ex-guerrilheiro e participante do filme, Carlos Eugênio Paz, que veio a Paris a convite dos organizadores do Festival do Cinema Brasileiro, que terminou na terça-feira, 18 de maio.
Quem se interessar pela história recente do Brasil deve ler o excelente livro de Carlos Eugênio Paz, Viagem à luta armada-Memórias da guerrilha, Editora Best-Seller. O livro tem um ótimo prefácio de Franklin Martins.

O grande Yves no Petit Palais

Chego para ver a exposição de Saint Laurent com minha filha Viviana uma hora antes de fechar. Vieram nos avisar no fim da fila para comprar os ingressos que o museu ia parar de vender. Eram quatro horas. Me despedi de minha filha, que foi fazer outro programa, e entrei no museu usando minha carteira de jornalista, passando na frente de todos os que esperavam na longa fila, que se desfez rapidamente.

Como jornalista não preciso fazer fila, além de entrar sem pagar em qualquer museu francês, com a carteira de imprensa estrangeira, renovada anualmente pelo Ministério das Relações Exteriores. São privilégios que julgo perfeitamente normais, afinal os jornalistas estão sempre apressados, correndo de uma entrevista à redação, de uma exposição a um encontro de trabalho. E a gratuidade em museus é um pequeno privilégio para profissionais que não ganham salários fantásticos (com pequenas exceções) e precisam se informar, conhecer o que se passa no mundo das artes e adquirir uma bagagem cultural razoável. Meu amigo Ricardo Boechat é contra esse tipo de privilégio e já tivemos uma discussão acalorada sobre isso. Acho perfeitamente defensável jornalistas não pagarem museus, mas sou contra qualquer tipo de vantagem fiscal para jornalistas, como já foi o caso no Brasil.

Até 29 de agosto, quem vier a Paris não pode perder a exposição do Petit Palais que homenageia o maior artista da moda do século XX. A exposição tem 300 modelos de alta costura de Yves Saint Laurent, além de croquis, vídeos de desfiles e fotos. A obra do artista pode ser vista em ordem cronológica numa profusão de cores e estilos. São 40 anos de criação de um dos maiores artistas do século, o homem que tirou o smoking dos armários masculinos, feminizou-o e vestiu mulheres como Laetitia Casta e Catherine Deneuve, além de baronesas e burguesas de diversos continentes. A divina Deneuve, que foi musa e amiga de Yves, tem uma sala com vestidos exclusivamente criados para alguns de seus filmes que passam em vídeo.

A exposição é uma iniciativa da fundação Pierre Bergé-Yves Saint Laurent “sous le haut patronage de Madame Carla Bruni-Sarkozy”. Juntamente com a abertura da mostra, houve o lançamento simultâneo de vários livros sobre Saint Laurent, entre eles o livro de Pirre Bergé, “Lettres à Yves”. E em breve sai nos cinemas o filme de Pierre Thoretton, “Yves Saint Laurent-Pierre Bergé, l’amour fou”.

Beaubourg-Metz

O Beaubourg (Centre Georges Pompidou) ganhou uma sucursal na cidade de Metz. Mais um motivo para visitar essa charmosa cidade do Leste da França, ligada a Paris pelo TGV em menos de duas horas de uma viagem confortável, com a paisagem da Champagne e da Lorraine como bônus.

Amigos de Metz que estiveram na inauguração nos falaram da beleza do museu que vimos na televisão, de arquitetura ousada e do nível extraordinário da primeira exposição que reúne 700 das melhores obras do acervo do Beaubourg de Paris. A mostra se chama “Chefs-d’oeuvre?”, como uma interrogação sobre o significado de uma obra-prima. O Beaubourg-Metz vai rivalizar com a magnífica catedral da cidade, duas boas razões para visitar essa charmosa cidade da Lorraine. O museu deve funcionar para Metz como o Museu Guggenheim funciona para a cidade de Bilbao desde que foi fundado : um polo de atração turística que dinamiza toda a economia da cidade.

Na inauguração do Beaubourg-Metz uma senhora contava sua emoção de ver um Picasso pela primeira vez. As obras-primas saem de Paris para emocionar quem não pode viajar à capital.

Latune, o papel de Van Gogh e de Jules Verne


Claude Hordern é psicanalista. Depois de morar muitos anos no sul da França, comprou uma casa na região da Drôme e hoje trabalha na cidade de Valence. A Drôme é uma região belíssima, banhada pelo rio Drôme, afluente do Ródano.

Claude é neta de um antigo fabricante de papel, Charles Latune, que deu nome ao papel que fabricava. Na sua casa, ela guarda uma espécie de parafuso gigante que hoje decora sua sala. Esse parafuso era uma das peças da máquina que fabricava o papel no qual escrevia Jules Verne e no qual desenhava Van Gogh. Os cartões de visita da presidência da República também eram fabricados pela fábrica Latune, que teve de fechar as portas em 1973, pois os processos de fabricação do papel tinham sido superados por métodos mais modernos e rentáveis.

Hoje, os prédios que abrigaram a fábrica de papel e as casas dos patrões e empregados formam um belo conjunto de edifícios de pedra da pequena cidade de Blacons. Um deles é a sede da prefeitura.

Deixei a casa de Claude depois de ter ouvido muitas histórias da guerra. Procurando um parente dela que pertencia à Resistência, os soldados alemães prenderam na adega a menina com seu avô e duas outras pessoas. Diariamente os ameaçavam de morte e quebravam parte das garrafas de vinho da adega. “Nem mesmo tinham o bom gosto de beber o vinho. Destruíam as garrafas para nos chocar e ameaçar”, lembra Claude Hordern. A sorte da família é que logo depois os aliados libertaram a França.

Harry Connick Jr. em Paris: o cantor e a first lady

Finalmente. Depois de tentar duas vezes comprar ingressos para shows de Harry Connick Jr. (em Nova York e em Paris), vi e ouvi o maior cantor americano na Salle Pleyel, dia 13 de maio. Ele é um misto de Frank Sinatra e Chet Baker, músico de jazz, pianista e cantor de primeira linha.

Na sala Pleyel, minha filha Viviana, a jornalista Anna Lee e eu vivemos um momento musical inesquecível e descobrimos um americano com um senso de humor britânico. Entre uma canção e outra Harry conta histórias e faz comentários. Ele fez um número de imitação do mau humor francês para dar informações que é uma pequena obra-prima. Apesar de serem o alvo, os franceses aplaudiram e riram muito das piadas do cantor.

Ele também brincou com o fato de ter cantado uma canção com a “first lady” Carla Bruni-Sarkozy. O cantor e a first lady se apresentaram na televisão ao vivo cantando em inglês. Harry fez piadas com um hipotético e-mail convidando-a para o show.
Até agora, ninguém teve a ideia de inventar um romance entre os dois.

sábado, 15 de maio de 2010

Brasil no Le Point


Brésil, le nouvel eldorado. Com esse título a revista Le Point abre uma reportagem de capa de 21 páginas sobre o Brasil, mostrado como novo um Eldorado. A primeira matéria se intitula "O Brasil levanta voo", depois o presidente Lula ganha um longo perfil em “Lula, campeão do mundo dos presidentes”. O dossiê especial não deixa de falar do racismo, da conquista da Amazônia e “do homem que quer ser mais rico que Bill Gates” (Eike Batista). Os candidatos à presidência, Dilma e Serra têm direito a um perfil sucinto. O presidente Lula é descrito como "intuitivo, esperto e independente, com alma de negociador e inteligência política reconhecida até mesmo pelos que não gostam dele". O Brasil é “um gigante” no tamanho e nos números da economia, com previsão de crescimento de 6,8% para 2010, segundo o Morgan Stanley. A zona euro deve ter no máximo 1%, diz Le Point.
Na matéria que tem por título “No país do racismo cordial”, o historiador Joel Rufino é apresentado como um professor universitário que “fala um francês magnífico”, casado com uma psicanalista branca. Ele mora na Avenida Vieira Souto, “um dos endereços mais chiques do Rio”. Para concluir, a revista diz: “Eles são o único casal misto no prédio. Rufino conta que desde a infância compreendeu que para subir no mundo dos brancos tinha que ignorar os insultos e coisas desagradáveis. Ele mora há vinte anos nesse prédio e nunca nenhum morador lhe dirigiu uma palavra”.

Raoni com Chirac e Sarkozy

Vi o chef Raoni no Le Monde e, ao vivo, entrevistado na televisão. Estava em Paris para o lançamento do livro Les mémoires d’un chef indien, que tem prefácio de Jacques Chirac e foi escrito por um jornalista francês, Jean-Pierre Dutilleux. Raoni disse que veio “implorar a Jacques Chirac e a Nicolas Sarkozy para que impeçam o presidente brasileiro de construir a barragem sobre o rio Xingu”. Segundo ele, a barragem vai inundar uma região de 500 Km2 e será um desastre para os índios e a população da região.
No jornal do Canal Plus, Raoni pegou sua lança e começou a dançar para mostrar como os índios vão convocar a guerra se nada for feito. Todo mundo aplaudiu como se fosse um espetáculo. Mas Raoni não se exibia para gringo ver. Ele está muito preocupado e espera conseguir a intervenção de Sarkozy e de Chirac.
O problema é que os brancos franceses estão querendo vender Rafales aos brancos brasileiros. A diplomacia de branco passa pelos milhões de euros da venda de aviões e Sarkozy não vai querer sacrificar tudo por um “pequeno” problema ecológico.

Saint-Germain de Sartre, Beauvoir e Gréco

Há 30 anos o filósofo Jean-Paul Sartre morria em Paris. A revista Lire lançou um número fora de série sobre o filósofo existencialista para falar de sua filosofia mas também do homem que gostava dos cafés de Saint-Germain-des-Prés, que ele ajudou a tornar célebres. Hoje, a praça entre a igreja Saint-Germain-des-Prés e o café Les Deux Magots se chama Place Sartre-Beauvoir. Homenagem mais que merecida.
Na Lire, reencontramos seus cafés (Le Flore), seus restaurantes (La Coupole) e o Hôtel La Louisiane, na Rue de Seine, onde ele morou um tempo com Simone de Beauvoir (cada um no seu quarto, bien sûr). A revista fala também das namoradas de Sartre (muitas) e da filosofia sartreana, claro. No fim da leitura, estamos mais próximos do filósofo generoso com o dinheiro, com suas idéias e com seu tempo, que um dia escreveu: “Eu prefiro falar com uma mulher das coisas mais triviais do que de filosofia com Aron (Raymond)”.
Uma entrevista com a biógrafa inglesa Hazel Rowley, autora de Tête-à-tête. Beauvoir et Sartre, un pacte d’amour (Grasset, 2006) esclarece alguns ângulos desconhecidos da vida do casal. Ela diz: “Como sabemos, há uma coisa mais difícil que assumir o fardo de nossa própria liberdade : assumir a liberdade da pessoa que a gente ama”.
Para demonstrar como Sartre se tornara um mito universalmente respeitado e reconhecido desde os anos 50, Hazel Rowley comenta : “Nas fotos de sua visita ao Brasil, em 1960, uma multidão se comprimia num auditório para ouvi-lo: parecia mais um show de um Rolling Stones do que a conferência de um escritor”!
Juliette Gréco, que entrevistei para a Folha de São Paulo no ano passado, a musa dos existencialistas, começou a cantar incentivada por Sartre, que compôs para ela. Gréco conta que quando vai ao Café de Flore, do qual se sente “parte dos móveis”, costuma ouvir pessoas surpresas dizerem: “Olha, ela está viva”! E, segundo ela, os turistas japoneses se deliciam com a visão.

Godard em Cannes e nos USA

Jean-Paul Belmondo, 77 anos, foi aos Estados Unidos a convite do primeiro TCM Classic Film Festival para apresentar uma versão restaurada de A bout de souffle (Acossado), o primeiro longa-metragem de Jean-Luc Godard, que completa 50 anos este ano. Godard faz 80 anos em dezembro e tem sua nova obra, Film Socialisme, apresentada em Cannes esta semana. A bout de souffle, que marcou a história do cinema, foi rodado quando Godard tinha 29 anos. Gênio já nasce feito.
Belmondo, que a imprensa francesa chama carinhosamente de Bébel, comentou o prazer de trabalhar com Jean Seberg, contou como foi convidado por Godard para o filme cult da nouvelle vague e explicou por que nunca filmou em Hollywood: “Me sinto melhor em casa”. O mesmo festival apresentou uma versão nova de Pierrot le fou (de 1965), de Godard, com Belmondo e Anna Karina, que foi musa e mulher do cineasta. A atriz não pôde ir aos States por culpa do vulcão islandês.

A reação filosemita

“Hoje, as forças especiais israelenses são mais numerosas a combater no Iraque com uniforme americano, que na Cisjordânia e em Gaza com seu próprio uniforme” (Alexandre Adler, historiador e jornalista francês, de origem judaica, citado por Ivan Segré, doutor em filosofia, atualmente morando em Israel, em seu livro La réaction philosémite, ed. Lignes, Paris, 2009). O livro apresenta os novos intelectuais franceses judeus vindos da esquerda que se tornaram reacionários e defensores do “Ocidente” em nome do sionismo.
Adler, que defendeu publicamente o ataque de Israel a Gaza em 2008-2009, é partidário da “aliança total” dos Estados Unidos com Israel que, segundo ele, “limitará fatalmente a soberania do Estado judaico mas fará com que uma das fronteiras dos Estados Unidos se situe no Rio Jordão”.
Para mais informações sobre o livro e entrevista com o autor ir ao site :

http://www.editions-lignes.com/LA-REACTION-PHILOSEMITE.html


Publicado na Folha de São Paulo
Domingo, 09 de maio de 2010

O espectro do marxismo
Conferência sobre "a ideia de comunismo" proposta por Alain Badiou e Slavoj Zizek é reunida em livro


LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
A luta de classes está de volta. O espectro de Marx reaparece para mostrar que a "ideia do comunismo" e sua utopia igualitária não morreram, apesar dos desvios e dos estragos feitos a elas pelo "socialismo real" e pelos totalitarismos que dele resultaram. Num momento em que o capitalismo triunfante parecia ter definitivamente enterrado Marx, 20 anos depois da queda do Muro de Berlim, 15 filósofos de horizontes distintos resolveram repensar o comunismo.
Esse "pequeno número de filósofos constitui, no mundo de hoje, o pequeno grupo dos que não se intimidam com a opinião dominante", escreve Alain Badiou na apresentação do novo livro "L'Idée du Communisme" (A Ideia do Comunismo, ed. Lignes). A obra traz as 15 exposições proferidas na Conferência de Londres, em maio do ano passado, por iniciativa de Alain Badiou e Slavoj Zizek.
Na apresentação, Badiou declara que tanto ele quando Zizek tinham certeza de que "repor em circulação esse velho vocábulo magnífico, não deixar os partidários do capitalismo liberal globalizado imporem um balanço pessoal de sua utilização, relançar a discussão sobre as etapas e os desvios inevitáveis da emancipação histórica da humanidade toda eram uma tarefa necessária para o que hoje se mostra dramaticamente ausente: uma independência total de pensamento diante do consenso ocidental "democrático" que apenas organiza universalmente sua própria e deletéria continuação desprovida de sentido".
O filósofo Jacques Rancière escreve: "A "crise" atual é de fato o freio da utopia capitalista que reinou sozinha durante os 20 anos que se seguiram à queda do império soviético: a utopia da autorregulação do mercado e da possibilidade de reorganizar o conjunto das instituições e das relações sociais, de reorganizar todas as formas de vida humana segundo a lógica do livre mercado".
Apresentadas em ordem alfabética, as conferências de Alain Badiou, Judith Balso, Bruno Bosteels, Susan Buck-Morss, Terry Eagleton, Peter Hallward, Michael Hardt, Minqi Li, Jean-Luc Nancy, Toni Negri, Jacques Rancière, Alessandro Russo, Alberto Toscano, Gianni Vattimo, Wang Hui e Slavoj Zizek abordam diferentes aspectos do pensamento comunista.
O filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek conta que, numa reunião de lacanianos em Buenos Aires, em 2008, encontrou um grupo de psicanalistas venezuelanos, ferrenhos opositores do regime de Hugo Chávez. Alegavam que o presidente venezuelano fosse "violento e criminoso".
Zizek escreve: "Eles esqueciam que o regime precedente, no qual milhões de pobres vivendo em favelas eram excluídos da riqueza gerada pelo petróleo, era, em todos os sentidos, mais violento e criminoso. Trata-se de um exemplo claro da maneira como a classe tangencia a visibilidade (invisível) da violência: a brutalidade policial cotidiana para com os pobres é invisível, enquanto a menor perturbação da rotina das classes médias é condenada como um ato de violência".

Polêmica
Inimigos de Badiou o acusaram, em fevereiro, de "terrorista de salão", "mestre perverso" e "velho perdedor", em texto no semanário francês "Marianne".
O filósofo francês mais lido e comentado no mundo enche mensalmente o enorme anfiteatro da École Normale Supérieure, em Paris. Pessoas de todas as idades se deslocam para ouvir seu seminário sobre Platão. Mas seus inimigos não perdoam o fato de fazer ressurgir o espectro de Marx. Ainda neste ano, uma conferência em Berlim prolongará a reflexão sobre a "ideia de comunismo".

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Debilidade garantida


Na faixa etária de 4 a 14 anos os italianos são os europeus que mais veem televisão: 2h36m por dia. No país de Berlusconi _ o primeiro-ministro bufão, que deve fazer Dante, Da Vinci, Verdi, Antonioni e Visconti se virarem na tumba _ onde a televisão só não é mais vulgar que a brasileira, as redes do atual primeiro-ministro não vão ter problema de audiência quando esses jovens se tornarem adultos. A formatação de cérebros está funcionando a todo vapor.
A pesquisa dizia que depois dos italianos vêm os espanhóis com 2h29m por dia diante da televisão, na faixa de 4 a 14 anos. Em seguida, os franceses, 2h10m. Os alemães dessa faixa etária veem apenas 1h28m de televisão por dia. Sorte deles.

Pál Sarkozy e os quadros que despencam

Entrevistei o pai de Nicolas Sarkozy para a Folha de São Paulo no mês passado e a matéria foi publicada dia 30 de abril. Nesta quarta-feira, dia 5 de maio, resolvi dar um pulo com minha filha Viviana no Espace Cardin, na rua da embaixada americana, para ver a exposição de Monsieur Sarkozy. O estilo dele foi definido por um crítico como “Dalí kitsch” ou “pop art cafona”. A estética dos quadros é duvidosa, sem dúvida. Mas o que eu não poderia supor é que chegaria ao Espace Cardin para dar de cara com a exposição fechada. Os quadros caíram da parede, nos disse a recepcionista. Nem as paredes do Espace Cardin suportaram tanta cafonice.
Pál Sarkozy, um homem gentil e bem educado, mora num apartamento deslumbrante na Ile de la Jatte, bairro chique entre Neuilly, onde seu filho começou a carreira política como vereador e prefeito, e Levallois, as duas cidades mais ricas da banlieue parisiense. Neuilly, paraíso de milionários, tem o maior PIB da França.
Enquanto prepara um café expresso, Monsieur Sarkozy conta sua viagem ao Brasil, há duas décadas. Fala do réveillon em Copacabana, das pessoas vestidas de branco, dos fogos, das luzes e de uma lembrança mais faceira: as mais belas nádegas que ele já viu foram as das brasileiras, sobretudo da Bahia.
O pai do presidente casou quatro vezes e teve cinco filhos. Pál foi descrito por um jornal francês como um gêmeo de seu filho Nicolas: ambos são hiperativos, trabalhadores, exigentes, coléricos e gostam do vil metal. Depois da eleição do filho, o pai contabilizou 214 livros sobre o rebento no qual seu retrato não era dos mais edificantes: pai negligente, ausente, distante. Para retificar o que considera como inverdades, Pál Sarkozy pegou a pluma e lançou este ano “Tant de vie”. Aos 82 anos, o elegante e esbelto senhor se tornou escritor. Ele garante que o filho leu as provas e não pediu nenhuma modificação. Sua ex-mulher, mãe do presidente, tem a intimidade indiscretamente revelada: não era virgem na noite de núpcias. Segundo ele, ela se divertiu ao tomar conhecimento, 60 anos depois, da decepção do jovem marido húngaro.
« Recebi impressões muito positivas, inclusive da minha ex-mulher, a primeira, de quem conto coisas íntimas que guardei durante 60 anos. Falei com ela e ela riu muito. Durante 60 anos não fiz nenhum comentário nem crítica”.
No interfone, onde todos os moradores colocam seus sobrenomes, apenas as iniciais PSNB (Pál Sarkozy Nagy-Bócsai) indicam o apartamento do ex-publicitário. Há 5 anos, Pál Sarkozy resolveu começar a fazer telas com uma técnica mista. Ele concebe o quadro com o amigo Werner Hornung, ex-publicitário como ele, desenha um esboço e depois Hornung trabalha as imagens num computador. Há dois anos, os dois amigos começaram a expor em diversos países da Europa.
O quadro principal da exposição é um retrato de Pierre Cardin, em tiragem única. Todos os outros quadros têm tiragens de até seis cópias e são vendidos em torno de 10 mil euros, como o retrato que o pai fez do filho.
A pintura de Pál Sarkozy é nula, o livro de Pál Sarkozy é nulo, o filho de Pál Sarkozy é nulo. Se não fosse “pai de”, Monsieur Sarkozy não exporia nunca seus quadros que até as paredes rejeitam.

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br )
SEQUESTRO DE JORNALISTAS
O debate sobre a cobertura de conflitos

Por Leneide Duarte-Plon, de Paris em 4/5/2010

To go or not to go? Os jornais têm o direito de mandar correspondentes para zonas de guerra pondo em risco a vida de profissionais? O sequestro de um jornalista é um acidente de trabalho ou culpa de "imprudentes"? Quanto vale a vida de um jornalista? E quanto vale a vida de um jornalista refém?
A última pergunta tem resposta objetiva. Quanto os talibãs estão cobrando à França para libertarem os jornalistas Hervé Ghesquière, de 47 anos, e Stéphane Taponier, de 46 anos, sequestrados no Afeganistão no dia 30 de dezembro, juntamente com dois acompanhantes afegãos, quando realizavam uma reportagem para o canal estatal de France Télévisions, France 3?
Depois de qualificar os dois jornalistas de "irresponsáveis" por terem ido buscar informações "espetaculares e inúteis" no Afeganistão, o general Georgelin, chefe do Estado-Maior das três armas, chegou a mencionar, numa entrevista em fevereiro, a cifra de "mais de 10 milhões de euros" exigida pelos talibãs para libertar os prisioneiros. E, segundo ele, quem vai pagar, se houver acordo nesse sentido, é o Estado francês, ou seja, o contribuinte. Além do mais, os "imprudentes" mobilizam homens armados e recursos que deveriam estar dirigidos para o combate contra os terroristas (que são vistos por parte da população como resistentes).
Jornalistas inconscientes?
Dia 11 de abril, os talibãs difundiram num site islâmico um vídeo dos dois jornalistas em que eles declaram correr risco de vida se Paris não conseguir que Cabul e Washington libertem os prisioneiros afegãos para efetuar uma troca proposta pelos talibãs. Um vídeo já tinha sido divulgado em fevereiro como prova de vida e garantia de que os dois reféns estavam sendo bem tratados.
A grande polêmica começou quando, em janeiro, poucos dias depois do sequestro, guardado em sigilo pelas autoridades francesas, saiu na imprensa a controvérsia: os jornalistas devem ir ou não trabalhar em zonas de guerra, consideradas de altíssimo risco? Debatia-se em tese, uma vez que os nomes dos jornalistas e as circunstâncias do sequestro não podiam ser divulgadas pela a imprensa para não atrapalhar as negociações.
O secretário-geral do Eliseu, Claude Guéant, criticou os dois jornalistas como "inconscientes, agindo em contradição com as normas de segurança, com imprudência indesculpável". A reação dos jornalistas parisienses não demorou a aparecer em artigos e reportagens na imprensa. "Cinismo chocante, indigno de uma autoridade", reagiu a Société des journalistes de France 3, considerando que não se pode criticar os colegas "sequestrados no exercício da profissão". "Fala-se de liberdade de informação e nos dizem que a conta será salgada. Ora, ela é salgada primeiramente para eles, que foram sequestrados!", indigna-se Florence Aubenas, ex-jornalista do Libération, sequestrada no Iraque com seu tradutor e fixeur, e mantida em cativeiro por cinco meses, de janeiro a junho de 2005. Seu sequestro mobilizou toda a mídia francesa numa campanha permanente por sua libertação. O governo francês não quis comentar o preço de sua libertação.
Testemunhas de realidades
Alain Genestar, fundador do site Polka Magazine (que se tornou uma revista impressa no ano passado), escreveu um vibrante artigo no Le Monde defendendo a tradição dos repórteres de guerra, começando por relembrar a brilhante carreira de um deles, Robert Capa, responsável pela cobertura da guerra da Espanha, do desembarque dos aliados na Normandia, em 6 de junho de 1944, além da guerra da Indochina, na qual perdeu a vida. Seria Capa um imprudente indesculpável? Ele não foi sequestrado, os contribuintes não pagaram sua libertação, mas ele deixou fotos que marcaram a história do fotojornalismo e pagou sua coragem com a própria vida.
Antes de Florence Aubenas, os jornalistas Christian Chesnot et Georges Malbrunot foram capturados em 20 de agosto de 2004, também no Iraque, pelo Exército islâmico no Iraque juntamente com o chofer sírio Mohamed Al-Joundi. Os sequestradores deram um ultimato ao governo francês: anular a lei sobre a laicidade em 48 horas para que eles fossem libertados. O país se mobilizou para pedir às autoridades que as negociações fossem rapidamente concluídas. Eles foram libertados depois de 124 dias de captura. Mais uma vez, silêncio sobre eventual custo da libertação dos jornalistas.
Desses dois outros sequestros até o atual, mudou a estratégia do governo. Durante quase cem dias, a mídia ficou proibida de divulgar os nomes dos jornalistas a pedido do Quai d´Orsay (Ministério das Relações Exteriores), para não prejudicar as negociações e evitar por em risco a vida dos reféns. E uma autoridade chegou a criticar o alto preço que um sequestro representa para o país!
Importantes testemunhas de realidades que ficariam desconhecidas sem a coragem deles, encobertas muitas vezes por enganosa propaganda oficial, os repórteres de guerra e os fotojornalistas são indispensáveis veículos das atrocidades da guerra. Muitos deixaram suas vidas nessas coberturas. Não é justo que sejam acusados de sua própria morte ou sequestro.

domingo, 2 de maio de 2010

“A terra tem uma pele e esta pele tem doenças ; uma dessas doenças se chama homem.” Nietzsche

Controle do corpo da mulher

No ponto mais baixo de sua popularidade, o presidente Sarkozy resolveu dar uma guinada à direita para tentar reconquistar o eleitorado que, nas últimas eleições, voltou aos braços do Front National, de Jean-Marie Le Pen. Sarkozy vai legislar contra o uso do niqab, o veu integral que só deixa os olhos de fora, usado na França por, no máximo, duas mil mulheres. Como se não houvesse a crise, o desemprego cada vez mais acentuado, salários estagnados, queda do poder aquisitivo em geral. Mas para o governo, os franceses só pensam nas duas mil mulheres que usam o veu integral.

A lei que o presidente deseja ver votada daqui a um mês proibirá o uso do niqab (e não burca como muitos dizem e escrevem, praticamente inexistente na França) em todo o espaço público. As mulheres de negro não vão mais poder circular em ônibus, metrô ou nas ruas, simplesmente. Um risco: a lei pode ser julgada inconstitucional por atingir uma liberdade fundamental, a de ir e vir.

Uma mulher toda coberta de preto não é coisa tão rara em algumas banlieues de Paris. Mas é raríssimo dentro da capital. Outro dia, vi uma delas coberta dos pés à cabeça, com apenas uma pequena abertura nos olhos. Confesso que me senti mal. Pelo que ela representa de submissão a séculos de regime patriarcal interiorizado. Ela me chamou a atenção no ônibus que me trouxe a Montparnasse. Tudo nela era negro, inclusive as luvas e as meias que cobriam o menor pedaço de pele. E o que seria a única parte do corpo visível, os olhos, ela escondeu atrás de óculos escuros, como sua capa que caía até os pés.

Essas mulheres parecem fantasmas ambulantes, é verdade. Mas não é um direito de um cidadão que mora numa democracia escolher sua religião e se vestir como bem entende? Em vez de lei para reprimir, pedagogia, pedagogia e mais pedagogia. Elas precisam saber que, desde sempre, a mulher apavora o imaginário masculino.

No livro “Por que elas são (in)fiéis” (Ediouro, 2006), escrevi na página 29:
“Na religião muçulmana, o véu pretende esconder o corpo feminino. A ameaça do feminino num mundo patriarcal como o islâmico é reprimida através de leis e costumes que transformam as mulheres em seres totalmente tutelados, que passam diretamente da proteção do pai à do marido.

Nas sociedades islâmicas, o uso do véu é uma forma de manter controle sobre o corpo da mulher, visto como permanente fonte de tentação. Em nome do livro sagrado do profeta, tiranos fanáticos escondem suas mulheres sob os mantos para se convencerem de que elas não existem como seres desejantes, como iguais.

No livro “Psychanalyse à l’épreuve de l’Islam”, o psicanalista Fethi Benslama diz que o “véu islâmico é uma coisa (em itálico no texto) pela qual o corpo feminino é ocultado em parte ou totalmente porque este corpo tem um poder de encanto e de fascinação. Em outras palavras, o que é ostentatório para a religião, é o corpo da mulher, enquanto o véu seria um filtro que resguarda e protege de seus efeitos perturbadores”.

Essa ocultação da mulher fica mais clara e mais fascinante como tema de estudo psicanalítico quando se descobre no erudito texto de Benslama que Hagar, a mãe de Ismael, filho de Abraão, não é mencionada uma única vez no Alcorão, apesar de ser a mãe do filho de Abraão que deu origem ao povo árabe. Segundo o texto bíblico, Sara, citada inúmeras vezes no Alcorão, entregou sua escrava Hagar a Abraão para que lhe gerasse descendência, por ser ela própria estéril. De Hagar e seu filho Ismael teriam se originado os árabes, também chamados de “sarracenos” que significia “escravos de Sara”. De Isaque, filho de Sara, nascido posteriormente por milagre, segundo a Bíblia, teria se originado o povo judeu”.

A realidade é que apesar dos discursos piedosos, todos os três monoteísmos _ o judaísmo, o cristianismo e o islamismo _ pregam e praticam a discriminação sexual. O etnólogo francês Marc Augé escreveu em um artigo publicado recentemente: “Esse é o ponto em que todos os monoteísmos estão de acordo. Mesmo que tenham se desenvolvido em meios diferentes e tenham evoluído de forma desigual, nenhum dos monoteísmos pode dar lições ao outro neste capítulo da discriminação sexual”.

Publicado na Folha de São Paulo
São Paulo, domingo, 25 de abril de 2010

Freud na berlinda
Livro do francês Michel Onfray contra o pai da psicanálise gera polêmica antes mesmo de chegar às livrarias
LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
Inventor do inconsciente, que via como "o pressuposto fundamental da psicanálise", Freud é, mais uma vez, o alvo de um ataque violento que tenta, ao mesmo tempo, dinamitar o homem e a obra.
Desta vez, a bomba foi lançada pelo filósofo francês Michel Onfray e se chama "Le Crépuscule d'une Idole - L'Affabulation Freudienne" (O Crepúsculo de um Ídolo - A Fabulação Freudiana, ed. Grasset, 624 págs., 22, R$ 52). No livro, lançado na quarta passada, Onfray se entrega com indisfarçável deleite ao ataque contra Freud e o freudismo. O autor, que se tornou um best-seller com livros de vulgarização da filosofia, traça o que ele chama de "psicobiografia nietzschiana de Freud".
Para isso, leu toda a obra de Freud mais a correspondência e pretende provar que "a psicanálise funciona como uma metafísica de substituição num mundo sem metafísica e oferece elementos para a construção de uma religião numa época do pós-religioso".
Segundo ele, as instituições da psicanálise foram construídas por seus "sacerdotes" num esquema próximo ao da religião cristã, e os hagiógrafos trataram de esconder o que poderia vir a macular o mito.
Antes do lançamento, o mundo intelectual francês já debatia o livro na imprensa. De um lado, freudianos e lacanianos escreveram artigos e deram entrevistas para defender a psicanálise dos ataques de Onfray. Do outro lado, entrincheiraram-se o autor e os que apreciam o livro, que mereceu destaque nos grandes jornais e revistas e em programas de televisão sobre literatura. Revistas semanais chegaram a dar reportagens de capa. Freud na capa é sempre sinônimo de boas tiragens, sobretudo quando há uma polêmica de peso.
Para a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, "o livro é um odioso panfleto antifreudiano que favorece a proliferação dos boatos mais extravagantes". Ela acusa o autor de maniqueísmo, colocando os "bons" antifreudianos de um lado e, do outro, os "maus", adeptos de uma fabulação.
Michel Onfray não esconde que deve sua nova postura antifreudiana a "Le Livre Noir de la Psychanalyse" (O Livro Negro da Psicanálise), obra coletiva lançada na França em 2005, que em 40 artigos constituía um virulento ataque à psicanálise. Antes de "O Livro Negro...", Onfray lia e ensinava Freud a seus alunos.
A psicanálise sempre suscitou debates apaixonados. Chamada de "ciência judaica" pelos nazistas ou de "ciência burguesa" pelos stalinistas, a criação de Freud nunca gozou, em nenhum país, do conforto da unanimidade. Onfray se vê como um filósofo nietzschiano escandalizado com o que ele chama de "fabulação" da psicanálise, acusada por ele de se apoiar em uma série de "mitos ou lendas", que tenta desmontar.
Placebo
"A psicanálise é uma ramificação da psicologia literária, se origina na biografia de seu inventor e funciona maravilhosamente para compreendê-lo e somente a ele. A terapia analítica ilustra um ramo do pensamento mágico: ela trata e cura no estrito limite do efeito placebo", afirma Onfray.
"A psicanálise não cura e nem trata pela simples razão de que os pacientes que vão ver um analista não são doentes, mas têm o imaginário entulhado de culpas, de fantasmas, de representações. Ela permite a um sujeito que deseja, e se sente impedido, superar essas dificuldades por meio da identificação das resistências para poder, literalmente, se encontrar e se aceitar, desmontar as armadilhas que ele mesmo se coloca para evitar estar diante de seu desejo", explica o psicanalista Michel Plon, coautor, com Roudinesco, do "Dicionário de Psicanálise" [ed. Zahar].
A biografia do pai da psicanálise tampouco foi poupada pelo autor do "Tratado de Ateologia" e de uma "Contra-História da Filosofia" [ambos pela ed. WMF Martins Fontes]. Freud é apresentado como um filósofo que tenta se apresentar como um homem de ciência.
Segundo Onfray, o médico formado em Viena toma emprestado conceitos de Schopenhauer e Nietzsche sem honrar suas fontes; dissimula os fracassos terapêuticos da psicanálise; pretende ser um cientista e, ao mesmo tempo, se apresenta como "conquistador de um continente desconhecido", tomando seus desejos por realidade; é um burguês ávido de celebridade; persegue dinheiro e glória; mantém uma relação adúltera com a cunhada, que vivia em sua casa; é um falocrata, misógino e homofóbico.
"Não me interessa saber se Galileu foi homossexual, fetichista ou assaltante de estrada, desde que a Terra continue a girar em torno do Sol. Onfray se coloca na categoria dos fundamentalistas que nos EUA gostariam que Darwin tivesse sido queimado", reage o psicanalista Pierre Bruno.
Depois de destacar o que chama de erros factuais e responder com indignação a alguns dos ataques do livro, Roudinesco pergunta: "Se a psicanálise, como ele afirma, é uma ciência nazista e fascista, isso significa que ela é incompatível com a democracia. Por que, então, ela só se desenvolve nos países onde foi instaurado um Estado de Direito? Por que sempre foi banida pelos regimes totalitários ou teocráticos, mesmo quando seus clínicos colaboraram com tais regimes?".
Roudinesco enviou um convite a Michel Onfray para debater com ela em uma estação de rádio ou de televisão. O filósofo recusou-se ao duelo.
________________________________________

Publicado na Folha de São Paulo
São Paulo, sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pintor, pai de Sarkozy expõe em Paris
Artista lançou livro em que se defende de críticas; quadros combinam surrealismo e tecnologia

LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

Um presidente francês tem, pela primeira vez, pai e mãe vivos. E, pela primeira vez, um deles é estrangeiro. Pál Sarkozy Nagy-Bócsai nasceu numa família aristocrática na Hungria e chegou a Paris em 1948. Foi apátrida até 1976.
Neste ano, o ex-publicitário expõe pela primeira vez na França, no Espace Cardin, até 9/5. São 50 telas de um estilo qualificado por um crítico entre "Dalí kitsch e pop art cafona". Os quadros têm tiragens de seis cópias e são vendidos por volta de 10 mil (R$ 23 mil), como o retrato que fez do filho.
Devido à repercussão em torno desse quadro, Pál preferiu não exibi-lo para "que possam se interessar pelos outros". Depois da eleição do filho, o pai contabilizou 214 livros sobre o rebento no qual seu retrato não era dos mais edificantes: pai negligente, ausente. Para retificar as "inverdades", Sarkozy, 82, lançou neste ano "Tant de Vie" (tanto da vida).
O filho não interferiu. Sarkozy pai conversou com a Folha em seu apartamento.

FOLHA - Que lugar a pintura ocupa em sua vida?
PÁL SARKOZY - Comecei a desenhar quando criança. Vim para a França como refugiado, em 1948, e comecei a trabalhar como pintor. Nas grandes agências de publicidade, fiz criação. Há cinco anos, comecei a fazer quadros a quatro mãos. O importante é encontrar uma ideia. Um quadro conta uma história, não é somente um retrato ou uma natureza morta. Decidida a história, faço esboços e Werner [Hornung] desenha com o computador.
FOLHA - Como o senhor definiria o estilo? Surrealista?
SARKOZY - Se fosse vivo, Dalí trabalharia com o computador. Combinamos os dois universos, o clássico e as novas tecnologias. O que conta é o resultado e não se o pincel é de pelo de vison ou não.
FOLHA - Que nota, de 0 a 10, o senhor daria ao presidente?
SARKOZY - Não trato de política. Tenho muita admiração por ele, pelo que tenta fazer pela França. Mas é obrigado a tomar medidas impopulares. Falamos de tudo, menos de política.
FOLHA - Nicolas Sarkozy tornou-se presidente da República com um pai húngaro e um avô grego. Como o senhor viu o polêmico debate sobre a identidade nacional?
SARKOZY - Pela primeira vez na história da França, um presidente é filho de estrangeiro. Cheguei à França em 1948, a imigração era totalmente diferente, havia o Plano Marshall, não faltava trabalho, recebi minha carteira de estrangeiro e alguns dias depois já estava trabalhando. Criticam muito meu filho, nunca por ser filho de estrangeiro. Não há muito trabalho aqui, os estrangeiros não podem ser recebidos para ficar desempregados.