sexta-feira, 30 de março de 2012

Lacan, um pai



Saindo do Le Select, em Montparnasse, encontramos nossa advogada que conversava com uma cliente. Ela nos apresenta a amiga. Trata-se de Sibylle Lacan, 70 anos, filha do primeiro casamento de Jacques Lacan, e autora do livro « Un père » (Gallimard, 1994).
Sibylle não é tão conhecida quanto sua irmã Judith, filósofa de formação, que com o marido, o psicanalista Jacques-Alain Miller, forma o « casal infernal », nas palavras da irmã. As duas irmãs por parte de pai nunca se frequentaram. E, no entanto, têm a mesma idade pois Lacan saía do casamento e iniciava a relação com Silvia Bataille, quando suas duas mulheres engravidaram.
No processo do “casal infernal” contra Elisabeth Roudinesco por causa de uma frase no último livro da historiadora da psicanálise (Lacan envers et contre tout) em que ela atribui a Lacan um secreto desejo de funerais católicos, houve uma cena emocionante quando Sibylle tomou a palavra para dizer que o casal Judith-Jacques-Alain realizou o enterro como um verdadeiro rapto do qual soube apenas pela imprensa dias depois. « Começava a apropriação post-mortem de Lacan, do nosso pai », disse chorando Sibylle Lacan.

Sarkozy, DSK e as prostitutas

A pior coisa que poderia ter acontecido a Nicolas Sarkozy foi o “affaire” Dominique Strauss-Kahn em Nova York, em maio do ano passado. Se Nafissatou Diallo não tivesse entrado naquela suite dando origem ao encontro que acabou em processo (encerrado no âmbito penal mas em curso no civil), DSK teria sido eleito o candidato nas primárias do Partido Socialista (era o candidato mais forte) e hoje Sarkozy estaria certo de ter mais 5 anos pela frente, num novo mandato.
O processo de Nova York, iniciado com a acusação de estupro, afastou DSK definitivamente das primárias do PS. Se ele tivesse sido indicado, como previsto, um segredo muito bem guardado durante meses pelos serviços de polícia franceses teria explodido e adeus sonho da presidência para Strauss-Kahn.
Sabe-se que muito antes do « affaire » de Nova York a polícia francesa já tinha informações sobre o que se chama “o affaire do Hotel Carlton de Lille”, sobre as “parties fines”, como os franceses chamam as orgias de sexo grupal, organizadas por amigos franceses para o então diretor-geral do FMI, com prostitutas. Sua participação ativa na organização dessas “parties fines” ou “soirées libertines” levaram a Justiça a indiciar DSK por « proxenetismo », um delito pelas leis francesas.
DSK era o candidato ideal para os partidários de Sarkozy, que guardavam a história do hotel Carlton de Lille para ser revelada pela polícia logo depois do início de sua campanha que seria abortada com esse grande escândalo.
Mas havia uma camareira no meio do caminho e DSK foi nocauteado antes de participar das prévias do PS.  

Gréco e Davis

No seu livro de memórias, « Je suis faite comme ça », Juliette Gréco conta que seu namoro com o músico Miles Davis na França do pós-guerra foi uma verdadeira paixão. Jean-Paul Sartre um dia perguntou a Davis por que ele não se casava com a jovem atriz, que depois se tornou cantora. Ele respondeu que levá-la para morar nos Estados Unidos casada com um negro era um destino cruel demais para ela. Eles seriam humilhados, ele não entraria nos mesmos lugares em que ela era autorizada a entrar por ser branca.
Depois que o músico voltou aos EUA, o romance chegou ao fim. Mas cada vez que cantava nos Estados Unidos ou em grandes capitais, Gréco recebia flores que lhe mandava Miles, de quem ela diz, aos 85 anos : « Eu sempre o amei e ainda o amo ».

Pierre Bourdieu, o insubmisso
Entrevista com o sociológo Franck Poupeau
Leneide Duarte-Plon, de Paris*
A França foi paralisada por vários dias em 1995, com greves de trabalhadores do setor público, do setor privado, além de estudantes, que se opunham à reforma das aposentadorias, proposta pelo então primeiro-ministro de direita Alain Juppé. Na melhor tradição francesa do intelectual engajado, que remonta ao Sartre da revolta dos estudantes de Maio de 1968 e a Emile Zola do caso Dreyfus, o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), juntando a teoria à prática, participou ativamente do movimento social, levando pessoalmente sua solidariedade aos trabalhadores em greve.
Em 1999,  Bourdieu, que nunca se colocou num pedestal de « maître à penser », caracterizando seu trabalho pelo equilíbrio da ambição e da modéstia, interpelou a social-democracia europeia, incapaz de se opor ao processo, já fortemente avançado, de destruição dos benefícios sociais do Welfare State, isto é, do Estado-providência. Hoje, ele estaria ao lado dos « indignados » que protestam contra a submissão do campo político ao poder da finança, segundo analistas conhecedores do homem e da obra.
Autor de uma obra intelectual monumental, o insubmisso e engajado professor do Collège de France - posto que representa o supra-sumo da carreira universitária na França - nasceu de pais camponeses e encarnou em sua vida pessoal a meritocracia da República Francesa, que o levou a cursar filosofia na prestigiosa École Normale Supérieure, tornar-se etnólogo e depois sociólogo. Ele é hoje o segundo intelectual mais citado no mundo, superado apenas por Michel Foucault e à frente do terceiro, Jacques Derrida, segundo o Institute of Scientific Information de Thomson Reuters, que faz o acompanhamento do número de citações em publicações acadêmicas. « Bourdieu atravessa as fronteiras das disciplinas e dos países » diz o sociólogo Loïc Wacquant, Professor da Universidade de Califórnia (Berkeley), que foi seu aluno em Paris.
Hoje, os conceitos de habitus, reprodução social, violência simbólica e capital cultural, forjados por Bourdieu, fazem parte do vocabulário manejado por todos os sociólogos do planeta.
Para marcar os dez anos da morte de Pierre Bourdieu, a editora Seuil, em co-edição com a editora criada pelo próprio Bourdieu, Raisons d’agir, inaugura a publicação dos cursos e seminários do sociólogo com o lançamento do curso Sur l’Etat Cours au Collège de France 1989-1992 (Raisons d’agir-Seuil, 657 páginas) que compreende três anos de seu curso no Collège de France, em torno da questão do Estado. A obra, que revela uma erudição e um rigor científico dignos dos grandes mestres, foi organizada por Patrick Champagne, Remi Lenoir, Marie-Christine Rivière e Franck Poupeau, que concedeu uma entrevista exclusiva à Cult, em Paris.
LDP : O senhor trabalhou com Pierre Bourdieu ? Em caso de resposta positiva, em que contexto ?
Franck Poupeau : Fiz minha tese de sociologia com Patrick Champagne, (um dos quatro organizadores do livro), graças a uma bolsa que Bourdieu me outorgou.  Depois, cuidei de seus contatos com os movimentos sociais franceses e europeus e me envolvi pouco a pouco com os trabalhos acadêmicos. Bourdieu participou do meu juri de tese. Desde 2003 sou o responsável editorial dos Atos da pesquisa em ciências sociais (Actes de la recherche en sciences sociales) e dirijo, com outros sociólogos, a editora Raisons d’agir.
LDP : O livro Sur l’Etat contém os cursos de Pierre Bourdieu no Collège de France durante três anos, publicado em janeiro deste ano. Dez  anos depois de sua morte, Bourdieu, o insubmisso, o iconoclasta, tornou-se um « clássico » ?
Franck Poupeau : Faz bastante tempo que Bourdieu é o sociólogo mais citado no mundo. Se você pegar, por exemplo, o Jornal Americano de Sociologia, não há praticamente um só artigo que não faça referência a seu trabalho. Mas esse curso apresenta a vantagem sobretudo de mostrar « um outro Bourdieu », não o dos livros, mas o que ensinava e que formou durante quarenta anos diversas gerações de pesquisadores. Nesse texto, vê-se um Bourdieu pedagogo, atento a seu público, hesitante muitas vezes, avançando e voltando, testando seus modelos e conceitos sobre um dos temas mais difíceis que existem. Depois desse livro, fica difícil para seus detratores insistir na imagem de um pensador dogmático com um sistema fechado.
LDP : Este livro, que inaugura a publicação dos cursos do sociólogo, chega num momento em que a crise financeira conduz à diminuição progressiva dos serviços públicos. O principal adversário de Bourdieu não era finalmente o neoliberalismo com seu Estado mínimo ?
Franck Poupeau : Vemos emergir essa problemática no fim do curso, quando ele faz alusão às pesquisas que tinha começado e que serão em seguida publicadas no livro « La Misère du monde ». Ele faz uma referência ao que chama « a retirada » do Estado sob a égide de reformadores neoliberais. Mas seu pensamento sobre o Estado não se resume a isto, vê-se que ele tenta superar a oposição entre o Estado opressor (teoria marxista) e o Estado social (corrente social-democrata), para pensar sua ambiguidade fundamental. O fato que ele tenha se dedicado à defesa do Estado social no fim de sua vida não significa que ele tinha esquecido as outras « funções » do Estado. Todo o curso é uma prova disso.
LDP : Na sua opinião, como Bourdieu veria a atual crise europeia que ameaça a unidade da Europa, com Estados-nações enfraquecidos sob o domínio do poder financeiro globalizado todo-poderoso, o alvo preferencial das críticas do sociólogo ?
Franck Poupeau : Na realidade, essa crise não é tão diferente da que já tinha se iniciado no fim dos anos 1990, alguns anos depois de seu curso sobre o Estado. Daí a atualidade de seus escritos posteriores, sobretudo « Contrefeux 2 » (Contrafogos 2) cujo sub-título é « para um movimento social europeu » - um movimento do qual sentimos a enorme necessidade hoje, para articular as lutas na Espanha, em Portugal, na Grécia e em todo lugar. O mínimo que se pode dizer é que Bourdieu teve muito pouca audiência e não foi muito seguido pelas organizações sociais e sindicais francesas nesse projeto, com exceção da organização sindical SUD.
LDP : No seu combate contra o neoliberalismo, Bourdieu participou com os operários nas fábricas, em Paris, durante as greves de 1995. Hoje o filósofo Alain Badiou se engaja na luta dos « sans-papiers », os trabalhadores ilegais, sem documentos. O intelectual engajado é uma instituição tipicamente francesa ?
Franck Poupeau : Existe uma espécie de tradição crítica no mundo intelectual francês, que Bourdieu estudou com a ideia de autonomia do campo intelectual, que teria se constituído com dificuldade contra os poderes temporais no fim do século XIX. Uma das razões de seu engajamento a partir das greves de dezembro de 1995, que ultrapassaram o mundo operário pois englobaram também os estudantes, os assalariados do setor público e em menor escala do setor privado, era que era a autonomia do campo intelectual que estava ameaçada há vários anos pelo domínio da mídia sobre os campos político e acadêmico. A intervenção de numerosos intelectuais da esquerda social-liberal apoiando a reforma das aposentadorias proposta pela direita neoliberal no poder (o Plano Juppé) somente veio confirmar essas análises e precipitou a visibilidade de seu engajamento público contra esses intelectuais.
LDP : Os conceitos de « campo » (champ), reprodução (reproduction) e de « dominação » (domination) se tornaram correntes, impostos pelos trabalhos de Bourdieu. O senhor pensa que sua obra, mais reconhecida que lida, será agora mais conhecida e estudada com a publicação desses cursos no Collège de France ? Quais serão os próximos cursos publicados ?
Franck Poupeau : A obra já imensa mas esse livro pode contribuir para difundir os conceitos com uma abordagem mais pedagógica. Ele se encontra no ponto nevrálgico de vários outros livros e eixos de pesquisa de Bourdieu : seus trabalhos sobre a casa béarnaise (da região do Béarn) ou kabyla para pensar a lógica da casa do Rei e do Estado dinastia, sua pesquisa sobre o mercado da casa individual para pensar a lógica do Estado burocrático, seus trabalhos sobre a teoria da prática e sobre a linguagem para pensar a noção de poder simbólico, etc. Resumindo, é um curso que pode ser lido por pesquisadores experientes e as reações que recebemos vêm confirmar isso.
LDP : Como Bourdieu teria visto e analisado a eleição de um operário metalúrgico, Lula, à presidência da 9a economia do mundo (na época, outubro de 2002), superando todos os determinismos culturais, políticos e sociais sobre os quais o sociólogo teorizou ?
Franck Poupeau : A procura dos determinismos obedece a um princípio científico claro, explicitar as condutas, as lógicas sociais, é o que dá sentido à sociologia. E a sociologia crítica se interroga sobre os limites desses determinismos e de seu poder explicativo, como fazia no fundo a filofia crítica kantiana. Por outro lado, para ficarmos na tradição filosófica, Bourdieu era profundamente spinozista e marxista : é o conhecimento desses determinismos que pode levar à libertação em relação a esses mesmos determinismos. A emancipação social não é dada, ela é conquistada, é o fruto de um trabalho coletivo, de um trabalho de mobilização, de educação popular e de politização. Creio que o Partido dos Trabalhadores e Lula correspondem, mesmo em suas ambivalências, a essa ideia. E que Bourdieu, que sempre quis ir à América Latina mas adiava sempre a viagem por causa das urgências francesas e europeias, e pela consciência de que não podia ir por dois ou três dias. Ele teria ficado fascinado de ver o surgimento dessas « esquerdas de governo » na América Latina, de Lula a Evo Morales, esquerdas que são o produto de mobilizações sociais, na intensidade e na duração, inéditas desse lado do Atlântico.
LDP : Essa publicação dos cursos Sur l’Etat nos leva à descoberta de um Bourdieu diferente do autor que conhecemos, ou pensamos conhecer, através de suas obras ?
Franck Poupeau : Trata-se de um curso oral, no qual a palavra é livre, menos censurada que no texto escrito, Bourdieu chama a atenção para isso, enfatizando a dificuldade de transmitir suas análises a um público muito heterogêneo : ele deve falar a « colegas » sociólogos como também a não iniciados na disciplina, daí o esforço de pedagogia, de explicação não somente de seus argumentos e teses mas também de sua estratégia de pesquisa, de seu programa científico. Existem, pois, páginas inéditas sobre o que significa construir um modelo da gênese do Estado, no cruzamento da histórica com a filosofia política e com a sociologia, que não se encontraria num livro. Há também longas reflexões sobre as pesquisas passadas que revelam todas as sutilezas delas.
LDP : Em que as análises de Bourdieu sobre o Estado podem esclarecer políticas implementadas depois de sua morte em 2002 ?
Franck Poupeau : No fim do curso, Bourdieu faz diversas referências ao que ele considerava naquele momento (em que ele trabalhava na pesquisa coletiva publicada, em 1993, sob o título La misère du monde) como um « abandono do Estado », a desconstrução não somente dos serviços públicos e das políticas sociais mas da ideia de « público » e do ideal de universalidade que tinha presidido - através dos séculos de lutas de concorrência, de monopolização e de acumulação de capital burocrático - à construção do Estado. O processo estava em curso na França, depois da América do Sul, do Reino Unido ou dos Estados Unidos e faltava, talvez, a suas análises o recuo que temos hoje para dizer que as políticas liberais são menos um desaparecimento do Estado do que uma transformação do Estado,  de seus modos de gestão administrativa e de controle das populações.
Curso de 12 de Dezembro de 1991 :
A Construção do espaço político, o jogo parlamentar.
“Certos autores insistiram no fato de o Parlamento, particularmente o Parlamento inglês, ser uma invenção histórica, que se refletirmos bem, não tem nada de evidente: é um lugar onde as lutas entre os grupos, os grupos de interesses, as classes, se preferimos, vão se dar segundo as regras do jogo que faz com que todos os conflitos externos a essas lutas têm algo de semi-criminoso. A propósito dessa « parlamentarização » da vida política, Marx fazia uma analogia com o teatro : ele via no Parlamento e no parlamentarismo uma espécie de engodo coletivo no qual os cidadãos se deixam lograr ; essa espécie de teatro de sombras ocultaria de fato as verdadeiras lutas que estão fora (1). Penso que é o erro sistemático de Marx. Já disse isso cem vezes aqui, é sempre o mesmo princípio. A crítica marxista, que não é falsa, torna-se falsa quando esquece de integrar na teoria aquilo contra o qual a teoria é construída (2). Não haveria razão de dizer que o Parlamento é um teatro de sombras se as pessoas não acreditassem que ele é algo diferente. E ele não teria nenhum mérito de dizer isso. Em certo sentido, Marx diminui seus próprios méritos esquecendo que aquilo contra o qual ele afirmou sua teoria sobrevive à sua teoria : o Parlamento pode ser este lugar de debates regulamentados, num sentido um pouco mistificado e mistificador, esta mistificação fazendo parte das condições de funcionamento dos regimes e, em particular, das condições de perpetuação dos regimes que chamamos democráticos. O Parlamento é, pois, esse lugar de consenso regulado ou de dissenso dentro de certos limites, que pode excluir ao mesmo tempo objetos de dissenso e sobretudo de maneiras de exprimir  o dissenso. Pessoas que não têm as boas maneiras de expressar o dissenso são excluídas da vida política legítima ».
1. Karl Marx, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. Paris. Editions sociales, 1976 [1852].
*Publicada na revista CULT